Crítica: Ostinato (2021, de Paula Gaitán)


Vemos mãos que se movimentam. Mãos que apertam teclas pretas e brancas, produzindo sons. Vemos mãos tocando piano por um longo tempo, capturadas por uma câmera que acompanha aqueles detalhes corporais. Uma peça estranha, incômoda, dissonante, que fica um pouco mais compreensível quando, além das mãos, passamos a ver um rosto através de uma abertura. Entendemos que se trata do músico Arrigo Barnabé – é claro que entendemos, isso é anunciado desde o início. Observamos por mais minutos aquele corpo produzindo música até que, subitamente, alguém puxa a câmera do lugar e a posiciona dentro do instrumento, filmando as mecânicas que produzem os sons. Após alguns reajustes, voltamos novamente à face. Depois de um rápido agravamento do incômodo e da sensação de se estar perdido, Paula Gaitán retorna o espectador à zona de conforto quando encontra o conhecido em meio a este filme de idas, vindas e ciclos.

A 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes começou e a cineasta homenageada da vez é a diretora supracitada. Seu novo filme, Ostinato, abre um festival tradicional por se voltar ao cinema brasileiro independente. E ninguém melhor para representar o espírito e dar a largada do que Gaitán. Neste filme, onde acompanhamos o processo criativo de Arrigo Barnabé, é possível entender as conexões entre este cinema e uma ideia do que significa fazer filmes de maneira independente no Brasil, ainda que a produção deixe um pouco a desejar.

Dentro da proposta documental de observar como uma mente criativa se constrói pela expressão, a primeira metade do longa cumpre muito bem o papel de lapidar as nuances do processo. Isso porque caminha pela feitura (os atos de compor, tocar e interpretar) e pela ciência por traz da trajetória que produz a música. Alternando entre performances e longos momentos de explicação por parte do artista, Gaitán aparenta seguir por um caminho um pouco experimental na montagem do documentário, mas sem abandonar um senso de sentido. Sentido, pois a expressão daquilo que se sente, ainda que extrapole qualquer possibilidade de compreensão racional, não é desprovida de um significado. Há sempre um retorno, o que fica bem explícito no movimento cíclico que o filme cria.

Trata-se, sobretudo, de uma obra que se interessa menos por uma elucidação do que caracteriza a mente do artista e mais pelo desenho das diferentes conexões que ele produz, quase como um retrato. Isso pois o foco está sempre em si: em seu rosto, em suas mãos, em sua voz, suas ideias, sua música. Assim, envereda-se por um caminho de difícil elaboração, que se traduz em uma tentativa direta de capturar a expressão através da própria verbalização do que se sente/pensa. Acompanhamos um longo plano onde debatem objeto-humano e autora sobre categorias, sobre pontos de convergência em busca, justamente, de um sentido. E é aí que o filme se trai. Descolando-se da proposta sutil e experimental que vinha criando, a obra decide apelar para a busca explícita de respostas, de entendimento, quando o próprio artista analisado demonstra que isso não há. Seu olhar foge, quase implora pelo abandono da lógica e pelo retorno ao sentir. Surge deste momento uma interessante resposta à noção de ciclo como percurso criativo, mas já é tarde e há uma “desfiguração” do que havia inteiro até então.

Ostinato é uma abertura morna para o festival, mas ainda assim um filme de se respeitar. Experimental, interessado, incisivo, livre de amarras. Representa um espírito e sua realizadora é gigante demais para se ignorar tudo isso. Trata-se de uma obra que busca, que esboça, desenha, mas se perde um pouco em seu próprio anseio por capturar. Ao menos transmite a magistralidade de um artista que já foi muito mais esquecido do que deveria.

Direção: Paula Gaitán


Duração: 56 minutos

Elenco: Arrigo Barnabé

Sinopse: Uma investigação documental pelo processo criativo de Arrigo Barnabé.

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