Netflix contra o Sistema

    Existe um padrão nas séries brasileiras da Netflix que parece não cessar de se repetir, e que pode ser resumida da seguinte forma: um personagem com uma trajetória particular de injustiças e violências, a partir de sua inserção em um sistema, precisa lutar contra inimigos poderosos e desbaratar estruturas invisíveis, em um tipo de jornada pessoal de vingança e desafio às regras impostas – um movimento geralmente realizado às custas da própria estabilidade social do personagem. Este esquema pode ser encontrado particularmente em O Mecanismo, Onisciente, Irmandade e, mais recentemente, em Bom Dia, Verônica, produções que estão na linha de frente de investimento e público da plataforma. 

    Longe de se defender qualquer tipo de princípio organizado da Netflix – o que curiosamente faria este texto soar como suas séries – e considerando-se as particularidades de cada produção – por mais difícil que seja, por vezes, encontrá-las -, parece haver neste movimento algo pelo menos sintomático sobre os limites que a linguagem – e seu duplo aqui, a monetização incessante – coloca ao engajamento que a plataforma não cessa de reivindicar para si. Isto significa que se está diante de uma espécie de fronteira implícita para o que se pode alcançar como crítica neste modelo de realização audiovisual, algo que a outra fronteira, explícita – que se manifesta por meio de direções monótonas e atuações pouco marcantes – não cansa de reafirmar.

    O argumento deste texto é um tanto óbvio, e creio que os leitores habituais deste site já encontraram em diversos outros textos meus por aqui: o engajamento desperdiçado na obra encontra algum local social nos discursos sobre os objetos que ela supõe retratar. Noutras palavras, a partir desse movimento em que uma crítica social sempre encontra como saída a individualização por meio da vingança – uma redenção individual a um problema coletivo -, parece estar em jogo uma parte do impasse político em que o Brasil está inserido. Nisto quero dizer que a popularidade deste tipo de narrativa diz muito sobre como o brasileiro de classe média – o público-alvo da Netflix, afinal – enxerga a si próprio, e como os problemas sociais sempre aparecem com relação a algum tipo de crítica a-histórica e individualidade intransponível.
    Pensando primeiramente no ponto “mais fora” desta curva, Irmandade, tem-se exatamente a medida de como este modelo desperdiça sua oportunidade de realização crítica. As atuações marcantes e o lastro na história real do Primeiro Comando da Capital, em seu papel absolutamente divisível entre a condenação moral do crime e a defesa legítima – e legitimamente exposta na série – dos direitos humanos mínimos fazem com que a narrativa individualizada dos personagens torne-se um tanto mais interessante e complexa, a despeito da incessante ênfase em cenas de ação e violência repletas de glamour. Com isso, os personagens tornam-se ambivalentes diante de um sistema que é também ambivalente – posto que está ali tanto para conter o crime quanto para fomentá-lo a partir de corrupção, alianças escusas, pobreza estrutural e violência generalizada. Não há, portanto, papéis delimitados de antemão, tampouco pode-se falar de um “lado de dentro” e de um “lado de fora” do sistema, já que todos os personagens são parte do problema historicamente apontado na série. Por isso, a depender dos rumos de suas próximas temporadas, Irmandade pode atingir potenciais críticos muito interessantes na medida que abrir mão de embelezar ou considerar meramente exóticos alguns elementos do sistema carcerário e da constituição das facções, em particular o tipo de violência que ali constitui-se como regra – algo que parece ser a herança mais funesta da primeira leva de filmes da Globo Filmes, como Cidade de Deus. Mas isso é outra história.

    A questão é que Irmandade oferece uma perspectiva de como séries como O Mecanismo, Onisciente e Bom Dia, Verônica poderiam funcionar como efetiva crítica aos papéis políticos em jogo na sociedade, e como também abdicam desta pretensão. Nas três séries aqui elencadas, a individualidade de heróis – indubitavelmente heróis – contrasta com a podridão de um sistema – cujos rostos são raros e, quando presentes, apenas caricaturais – que domina, à moda Matrix, todos os rumos da vida social. Com isso, tem-se personagens principais que são verdadeiros paladinos da moralidade – geralmente egressos deste sistema – e que contam com a ajuda de indivíduos igualmente dotados de senso crítico e dispostos a desafiar as regras vigentes em prol de uma redenção pessoal – indivíduos que, por vezes, estão ali apenas para trair os personagens principais e mostrar como eles, de fato, estão sós.

    Em O Mecanismo tem-se a forma mais caricatural deste tipo de trajetória, posto que “o sistema” é, de fato, o que normalmente é chamado de sistema em críticas apressadas a “isso tudo que está aí” na vida política e social. Diante do fiasco histórico dia após dia provado pela Operação Lava-Jato, as frases de efeito sussurradas por Selton Mello soam ainda mais patéticas como perspectiva de algum tipo de mudança estrutural, ecoando no máximo algum tipo de crença neurótica em si mesmo como diferente da podridão generalizada do país. Ali, diante dos sujeitos dotados de honra – versões um pouco mais carismáticas e atléticas de Dallagnol e Moro -, parece haver algum tipo de argumento sobre a impossibilidade de se ter um sistema político no Brasil, dominado pelo sistema desde 1500, o que leva a série a uma aporia que, em última hipótese, coloca o diretor e seus roteiristas como também eles cruzados da moralidade que eles próprios defendem.

    Onisciente e Bom Dia, Verônica ao menos têm a desfaçatez de não corroborar um discurso antipolítico tão tacanho. No entanto, ambas as séries reforçam, a partir da virtuosidade das duas personagens principais, uma crença de que haja um movimento oculto de forças políticas abstratas que atuam de modo a prejudicar aqueles que tentam desafiá-las, que tentam “saber demais”. Nesta narrativas, o subtexto é algum tipo de elemento moralizante sobre a corruptibilidade dos homens, a ignorância ou alienação da vida social e a falta de virtude nas relações humanas. Algo que parece estar de volta à moda pela maneira como filósofos de televisão como Karnal, Pondé e Cortella passaram a esquentar Nietzsche ou Schopenhauer no micro-ondas e servir como reflexão sobre a vida política atual.


    O subtexto deste tipo de posicionamento de todas as séries citadas – um pouco menos em Irmandade – pode ser resumido da seguinte forma: o público letrado pede e é necessário fazer uma crítica social contra o que está aí, mas o limite desta crítica se situa, por um lado, nos usos e costumes de indivíduos e, por outro, no modus operandi de grandes corporações ou grandes cúpulas governamentais sem nome ou rosto, sem solução. Com esse movimento, é possível individualizar a crítica e as narrativas, e despolitizar a política: tirando dela, portanto, sua parte histórica e ideológica propriamente dita – algo nítido em séries como Black Mirror, não à toa também da Netflix.

    É necessário pensar, assim, que existe por trás da figura do herói – se mal-trabalhada, como é o caso quase sempre – necessariamente um argumento por contraponto à normalidade do normal, isto é, à mediocridade da vida social que depende, então, da existência de um sujeito que não se submeta a ela. Quando isso se abre à vida política brasileira, a partir da evocação dos discursos pretensamente sem partido ou sem ideologia dos gestores, o que se tem é um plano nítido do movimento que levou a vida pública brasileira ao estado de coisas atual. Ter em indivíduos a chave das soluções políticas é observar algum tipo de incapacidade da vida política, vista apenas como um jogo de aparências, discursos vazios e fingimento cínico. O herói atua, assim, pela remoralização do campo social a partir de sua própria virtude, algo que a ação das séries adora traduzir como quebra dos paradigmas por meio da vingança.

    Em um país em que diariamente se lincham pessoas nas ruas ou sob a tutela do estado no sistema carcerário, ou em que milícias e grupos de extermínio seguem atuando em áreas rurais e urbanas produzindo, com respaldo do atual governo, as formas mais arcaicas de repressão, o discurso da moralização por meio da virtude individual torna-se cada vez mais perigoso: de progressista, mostra-se um tanto afim ao conservador. (E lembre-se que a aposta da Netflix neste tipo de discurso tem um contraponto igualmente individualista – Democracia em Vertigem – tornando-se, então, inteligível, a partir do tom melancólico e constatativo da narradora-documentarista, como o Brasil é um país em que não se teria muito o que fazer).

    O desenho que as produções da Netflix parecem produzir do campo social e político brasileiro, então, pode enfim tomar corpo: existe um diagnóstico de um engano que eles produzem em nós, algo que faz com que aqueles que não tenham princípios necessariamente percam para o sistema. Cabe a nós, portanto, fazermos escolhas em nossa vida particular que nos despertem para a verdade que eles querem nos esconder. Simples, não? O preço a ser pago é apenas remover toda a historicidade do processo, e transformar em planos e unilaterais todos nossos problemas sociais mais complexos de nossa vida pública. Mas isso é um detalhe se você, como o personagem de Selton Mello, tem valores.

    A passagem do individual ao coletivo não precisa ser o individualismo, e este é o ponto. A multiposicionalidade – os infinitos lugares de fala e de escuta – que temos na vida social provam que não há, ou não poderia haver, espaço para heróis ou para narrativas de redenção e vingança em qualquer obra que se coloque como crítica social. Não existe um lado de dentro e um lado de fora da vida política, e não se pode tampouco afirmar que exista um único indivíduo propriamente apolítico ou alienado: as experiências recentes com os gestores eleitos nos mostram as consequências disso todos os dias. Divididas entre a crença cega na representatividade posta em jogo pela democracia ou, pior, na crença igualmente cega de que neste país nenhuma democracia seja possível – como um naturalista diria em 1880 -, as séries nacionais da Netflix parecem propor um debate com os limites que sua linguagem – e nem falamos sobre isso aqui ainda – conseguiria comportar. 

Eis o perigo de considerar-se emancipado.  

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