Especial Cinema Nacional #5: O Popular





(Partes 12, e 4 do especial aqui.)       

                                                                                                 
                                                                  
            Aproveitando o fato de este que vos escreve não é profundo entendedor de nenhum dos assuntos a que se dedica – e, portanto, não tem uma reputação a comprometer –, a tentativa deste texto será a de inocentar um réu que insistentemente é julgado à revelia pelo grosso da opinião comum: me refiro aqui à acusação de que o cinema brasileiro nunca foi popular, talvez por escolha ou talvez por incapacidade, o que levaria então à constatação da preferência do público nacional pelos filmes oriundos de grandes mercados estrangeiros. Em suma, nota-se desde já que esta é uma questão que atravessa critérios materiais, estéticos e éticos, o que dá nota de sua complexidade – proporcional à necessidade de se inocentar tão logo quanto possível este réu tão sofrido.



            Para começar esta espinhosa discussão, é necessário especular o que pode significar o tal popular. Pode-se pensar que ele seja uma questão de tema – o amor é mais popular que a bomba atômica? –, de forma – a ação é mais popular que o suspense? – de conteúdo moral – punir o mal faz mais sucesso do que deixá-lo livre enquanto sobe o letreiro de Fim?. Pode-se pensar também que isso seja uma questão de princípios – há coisas propriamente populares que devem ser alcançadas pela obra? – ou de fins – a bilheteria de um filme mostra como ele conseguiu ser popular?. Sociologicamente, seria possível imaginar que o popular está associado às classes baixas – a um falar, um modo de viver e de sentir as coisas –, enquanto algo como o erudito ou cult significaria uma imposição de um elemento estranho ao núcleo do comum?

    A constatação inicial a que se chega é: em todas suas possibilidades, popular parece estar em primeiro lugar associado a ingênuo, isto é, a formas de mundo não refletidas pelas pessoas que, massivamente, as reproduzem. Desta maneira, só existem obras populares oriundas de dois movimentos: ou da irreflexão de quem a cria – isto é, a pessoa faz e só poderia fazer aquilo que conhece e vive, como naquele populismo datado via CPC dos anos 1970 – ou da repetição consciente de um modelo do popular, buscando atingir um reconhecimento do povo através da obra, fadada a repetir formas e posições. Nota-se, assim, que só pode pensar de ambas as maneiras aquele que se enxerga como não-ingênuo, isto é, superior ou conhecedor pleno do que ou de quem observa. Neste esquema, é evidente, não pode haver nenhuma saída politicamente propositiva, já que o popular sempre será coincidente a si mesmo, pois nasceu do nada e está fadado a acabar da forma como começou; por outro lado, aquele que é exterior ao popular permanecerá ad eternum em sua posição esclarecida a observar. O mundo é imóvel.




Em Sem Essa, Aranha é necessário atravessar a cerca.


        Para notarmos esses mecanismos em funcionamento, pensemos, por exemplo, como uma figura como Luiz Gonzaga é comumente associada à imagem de um Nordeste puro, místico e enraizado em suas tradições (forma culturais previsíveis) – algo debatido recentemente por Bacurau (Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) – sem que se tome nota de como o maior mérito individual da carreira do músico está no fato de ele ter criado, com enorme cuidado, uma estética própria de Nordeste e, então, tê-la popularizado incessantemente (algo que torna sua participação em Sem essa, Aranha, de Rogério Sganzerla (1970), tão significativa, aliás). Pensemos, ainda no campo da música, como qualquer crítica à qualidade de gêneros considerados populares é rebatida prontamente com a acusação de elitismo ou de incompreensão daquilo que seria a verdade verdadeira do Brasil – o que, em um movimento crítico semelhante ao acusado sobre Gonzaga, ignora que algo como o sertanejo universitário é cuidadosamente moldado em discurso e estética por produtores que passam muito longe da própria ingenuidade atribuída ao público-alvo de suas criações, que seriam em si magicamente populares.


            Está claro que a categoria não se sustenta. Se ela é sociológica, ela é, na melhor das hipóteses, elitista – já que precisa avaliar um outro homogêneo a partir de um eu que não faz parte do que está a avaliar. Se ela é temática ou formal, ela aperta as mãos da teoria dos gêneros de Aristóteles e assume que se baseia numa visão de 3 milênios de idade para captar a benevolência do outro no século XXI (aliás, associar comédia à ralé, como a Globo Filmes insiste em fazer, é algo assustadoramente aristotélico). Mas, pode-se argumentar, e neste ponto a sentença sobre o cinema nacional é decretada, que o popular é uma categoria do real, isto é, pode ser medida por réguas quantitativas como reações, ingressos vendidos ou números de plays: neste caso não haveria argumentação possível, pois se está diante algo que deve ser apenas constatado: e pobre daquilo que está fadado a ser, para sempre, impopular. Aqui começam os maiores problemas a se lidar.


            Os filmes brasileiros de maior audiência nos últimos anos foram quase em totalidade comédias de costumes, que retratavam majoritariamente a ascensão de personagens de classes baixas às classes altas (ou ao menos de um lugar de inferioridade a um de superioridade): De Pernas para o Ar 1, 2 e 3, O Candidato HonestoMinha Mãe é uma Peça 1, 2 e 3, Até que a Sorte nos Separe 1, 2 e 3, Suburbano SortudoVai que Cola. Estes filmes são produtos de um método específico de produção que envolve insistentes testes sobre a reação de espectadores à obra antes que ela entre em circulação, algo avaliado a partir de critérios quantitativos disponibilizados por empresas especializadas nisso. Roberto Santucci é, no Brasil, tanto o mestre destas comédias – seu trabalho de direção ou co-direção está na maioria delas – quanto o maior aperfeiçoador do método, algo amplamente descrito em Ao Gosto do Freguês, brilhante texto de Luiza Miguez para a Revista Piauí, infelizmente fechado para assinantes. Com o sucesso reiterado de seus filmes, Santucci fala com a convicção de quem tenha chegado ao grau-zero do popular, já que seu método é insistentemente provado pelos números tanto de bilheteria quanto de avaliação. É como se houvesse, enfim, um modelo perfeito de aproximação – a palavra é importante – da obra ao que é em-si popular, e deve ser alcançado para que se obtenha retorno financeiro satisfatório ao investido.


            Os números estão aí – assim como os números que colocam nas 20 maiores bilheterias da história cinema brasileiro 13 comédias, 2 filmes religiosos e 2 filmes pretensamente eróticos. Uma voz ao fundo diz que é disso que o povo gosta e que este baiano metido a intelectual – impopular, pois – está procurando pelo-em-ovo ao ver nisso um problema, típico daqueles que querem que o povo veja Godard depois de trabalhar 44 horas semanais com sua nova Carteira Verde e Amarela. E aqui vem a maior dificuldade de reverter a sentença: o teor de constatação que o argumento quantitativo do popular traz consigo. O popular é um dado a priorié assim porque é assim, ora, veja os dados.

O povo, esse ignorante?

          Mas notemos, então, que a categoria do popular só permanece em circulação para servir aos interesses de uma elite que lucra (muito) com ele, e aqui nossa dialética fica interessante. A edificação da homogeneidade do gosto é aquilo que dá vazão a nichos de mercado, que precisam de uma demanda para existirem como tais, e que só se sustentam por isso. Assumir o popular como um a priori é, assim, trocar a consequência pela causa: talvez Vingadores seja mais visto do que Godard no Brasil não por ser em si mais popular nem por trazer para as telas exatamente aquilo que o povo gosta, mas sim por passar nos cinemas de todo o país – em muitas cidades, com exclusividade –, por encontrar respaldo nos valores e estéticas veiculados nas mídias de massa, por dar vazão aos padrões de gozo e consumo que circulam nesta sociedade, por ser respaldado por ferramentas de análise difundidas sobre o que define a qualidade destas obras – já parou para pensar que muitas pessoas dizem que não gostam de poesia, por exemplo, por não saber quais as ferramentas necessárias para se ler um poema e então dizer que ele é bom?. O mais interessante desta história é que o próprio filme, no fim das contas, irá reiterar quase tudo o que tem como pressuposto sobre o que diz e como diz: o popular se constrói a cada obra popular. Sendo assim, considerar nosso conceito como um a priori desconsidera a materialidade do gosto como um processo, e a assume com um dado: a constatação cômoda daqueles que dizem que a sociedade é assim porque é assim, e que a providência divina ou a mão invisível do mercado – é a mesma coisa, afinal – irão regular as desigualdades sociais com a naturalidade com que elas se formaram.

            Devemos nos perguntar, se quisermos jogar com a categoria que estamos negando, em que medida houve realmente alguma chance de nosso cinema ter sido popular para além das comédias da Globo. Se houve em algum momento um projeto educacional que visasse a autonomia de análise e fruição de uma obra, se na época de ouro do cinema nacional a ditadura civil-militar permitiu boa difusão para os filmes de Nelson Pereira dos Santos ou algum financiamento para os de Júlio Bressane, se há hoje alguma garantia para alguém que rode um filme de que haverá dinheiro para terminá-lo. Há muitas determinações e sobredeterminações em jogo antes da constatação do as coisas são como são: principalmente a hipótese intragável do como as coisas poderiam ser ou ter sido. Calar sobre esta hipótese é fazer uma partilha arbitrária do sensível entre os eruditos – nós que compreendemos e conseguimos reproduzir para vender – e os ingênuos – que simplesmente consomem sem sequer perceber o que consomem: o popular é uma categoria erudita, e só existe em função do lugar que molda e define seus termos.


            Dizer que qualquer coisa pode vir a ser popular – ou, por outro lado, que qualquer coisa pode deixar de ser popular – é afirmar que as bases materiais da sociedade podem ser alteradas, porque não há ninguém no mundo cujos termos de vida – gostos, amores, desejos, valores éticos e morais – já estejam dados definitivamente ou sejam restritos a uma identidade que defina a maneira como se enxerga o mundo. Em outras palavras, significa dizer que nada pertence a ninguém, justamente porque tudo pode pertencer a todos, e deixar de pertencer novamente. Com isso, acaba-se com o povo como uma categoria predicativa, em que se define a partir de critérios arbitrários quem ou o que está do lado de dentro ou do lado de fora: foi essa a discussão de Terra em Transe, há tantos anos, afinal.


Nelson Cavaquinho por Leon Hirzschman: erudição afinal.



            Por isso, revertendo o diagnóstico mais corrente, notar como o cinema brasileiro (quase) sempre apresentou trajetórias autorais longínquas (Luiz Rosemberg Filho ou Ana Carolina, por exemplo), que lutaram contra todos os percalços materiais possíveis para se desenharem, significa não que este cinema tenha sido resistente à popularidade ou aos termos do que deveria fazer para ser compreensível para as massas, mas sim que tenha acreditado que as condições materiais do Brasil, suas pessoas e seu ambiente social tivessem o direito de se manifestar em formas distintas daquelas consagradas pelo mercado como populares: justamente porque o popular é uma categoria falsa, que não dá conta da multiplicidade de sensibilidades e experiências que existem por aqui. É como já dito sobre Ladrões de Cinema (Fernando Coni Campos, 1977) anteriormente: a enorme grandeza do cinema nacional está em olhar para seus limites e enunciá-los, para então vê-los como possibilidades latentes. O popular, por outro lado, precisa olhar para os limites apenas como impossibilidades, e então silenciar sobre elas, já que é ali que seu conceito deixa de funcionar.


            O cinema brasileiro não pode ser culpado nem por suas condições materiais – pelos monopólios estrangeiros das salas de exibição com facilidades enormes de financiamento, pelo domínio de distribuidoras atreladas a elas, por esse sistema que impede a viabilidade de um mercado interno autônomo, pelo Estado que se nega a assegurá-lo como ocorre em países como a Coréia do Sul com os resultados que temos visto (como em Parasita)– nem por seus produtos que distorcem o jogo da repetição do mesmo, repropondo-o. Os culpados são aqueles que precisam de uma imagem estática de Brasil para, então, lutar todos os dias para ter o monopólio sobre ela. Novamente, o que está em jogo é a possibilidade infinita da dissidência, a desnaturalização do dado como o único possível. Muito longe de classificar como mero lixo uma comédia da Globo – o erudito é também um jogo que parte de um a priori e de um lado de fora –, superar o popular é poder viver em condições para que todos possam escolher entre produtos distintos e histórias distintas, e notar neles suas diferenças, suas particularidades, sua relação com outros produtos, etc. E então criticá-los.

            Só haverá democrático quando não houver mais popular, em suma.

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