A jornada de autoconhecimento em A Viagem de Chihiro (2001, de Hayao Miyazaki)


Em fevereiro a Netflix disponibilizou no catálogo 21 filmes do famoso Studio Ghibli, — fundado pelo diretor e mestre da animação Hayao Miyazaki, junto com Isao Takahata e Toshio Suzuki —  conhecido mundialmente como produtor das animações que marcaram a cultura japonesa das últimas décadas, incluindo A Viagem de Chihiro. Como uma criança na época em que o filme foi lançado, posso dizer com firmeza que o sucesso foi absoluto e o número de vezes que assisti o longa chega a ser tão insano que perdi a conta! Provavelmente o dono da locadora — saudades, não? — já deixava minha cópia do DVD separada, por via das dúvidas.

Sucesso de público e crítica, o longa de Miyazaki foi a primeira animação japonesa a ganhar um Oscar e a maior bilheteria da história do país, perdendo o título apenas 15 anos depois para a animação Your Name, de Makoto Shinkai. Ainda falando em premiações, foi co-vencedor do Berlin Film Festival de 2002 e primeiro filme a fazer mais de $200 milhões antes de estrear na América. Este texto, então, é uma viagem por este filme para entender o que o torna tão complexo e grande demais para uma só realidade.


Muito se tem discutido sobre como Divertida Mente, de Pete Docter, retrata a mente humana e como esta lida com o mundo à sua volta. De fato o filme é um sucesso ao personificar as cinco emoções básicas  alegria, tristeza, medo, nojo e raiva — e o processo de formação de personalidade, armazenamento de memória, importância de um equilíbrio entre elas e até mesmo como o processo de mudança, puberdade e até mesmo um início de depressão agem na vida da garota e, consequentemente, da família. E A Viagem de Chihiro, 14 anos antes, já trazia uma trama similar.

Chihiro é uma garota de 10 anos que está, relutantemente, de mudança para outra cidade. No caminho para a nova casa, o pai parece perder a entrada e a família acaba por encontrar uma ponte — seria nossa famosa travessia do primeiro limiar? O pai de Chihiro parece animado a explorar o local, mesmo a garota se mostrando amedrontada com a possibilidade; no entanto, com medo de ficar sozinha no carro, ela acaba acompanhando os pais na jornada que dá início à toda aventura.


Ao encontrar o que o pai pensa ser um parque de diversões abandonado da década de 90, o casal se delicia com as comidas de um restaurante abandonado, enquanto Chihiro — temerosa que possam irritar quem quer que viva ou trabalhe ali — decide andar pelo local. Não por acaso a obra do diretor japonês também foi muito relacionada com Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Se pensarmos no túnel como a toca do coelho, as comidas como o bolo com a inscrição “coma-me” e em ambas aventuras e personagens fora do comum, não é tão difícil imaginar o porquê da comparação. 

Ao tentar voltar para o encontro dos pais, a garota se depara com estes transformados em porcos, enquanto seres misteriosos aparecem lembrando muito uma “cidade fantasma”, no sentido literal da palavra. É então que Chihiro se vê em um outro mundo, com seres que nunca imaginaria existir e precisando da ajuda deles para salvar os pais.


Talvez o que torne a obra tão majestosa e extremamente impactante seja o fato de não existir apenas uma interpretação fechada sobre o que é visto em tela. Em verdade, assistindo em diferentes fases e momentos da vida a leitura também muda, a percepção se expande e cada personagem tem seu universo próprio para ser explorado, questionado e discutido. O sentimento ao terminar de assistir o que, sem medo, chamo de a obra-prima de Miyazaki, é de curiosidade sobre aquele universo e criaturas e seus destinos. ´

Complexo, sensível e repleto de simbolismos — principalmente referente à travessias — o filme consegue discutir, sempre trabalhando na dualidade, a questão da identidade. A protagonista, por si só, já se apresenta em um processo de liminaridadetransitando entre cidades, estados de espírito e saindo da infância para entrar na adolescência. É um período em que ainda há muita imaginação e pureza, mas muito medo e retirada da zona de conforto. 


A própria ideia da dualidade também é trabalhada na identidade de Chihiro em relação ao seu nome. Quando aceita que a garota trabalhe em sua casa de banho, a bruxa Yubaba declara que o nome da menina lhe pertence agora e a renomeia como Sen — número mil em japonês. E seu novo nome representar um valor simboliza outro forte ponto de Miyazaki no longa: a perda da identidade fruto da ganância e consumo exacerbado. 

O primeiro momento em que a crítica é exposta trata-se da gula e arrogância dos pais de Chihiro ao verem as comidas à frente, sem ninguém por perto, levando-nos a posteriormente serem transformados em porcos — animais ainda relacionados ao capitalismo. Na casa de banho há a soberba e exploração de Yubaba que, francamente, lembra muito o clipe de Another Brick in The Wall no quesito tirar completamente a essência e personalidade de seus funcionários.

 

Escrito, dirigido, desenhado e animado por Miyazaki, a obra visa contar uma história em que uma garota de dez anos, com todas as suas complicações, pudesse ser a heroína de sua própria história. Ainda sobre suas protagonistas, o cineasta diz: 

“Muitos dos meus filmes têm fortes lideranças femininas — garotas valentes e autossuficientes que não pensam duas vezes em lutar pelo que acreditam com todo seu coração. Elas precisarão de um amigo, ou de um apoio, mas nunca um salvador. Qualquer mulher é tão capaz de ser um herói como um homem.”

E se A Viagem de Chihiro encanta por sua complexidade e riqueza de símbolos e detalhes, o diretor também mostra que sabe valorizar o silêncio como recurso cinematográfico, — anos antes de Um Lugar Silencioso transformá-lo praticamente em personagem principal da história — gerando momentos contemplativos absolutamente envolventes. Com seu estilo de desenho advindo dos artistas gráficos japoneses clássicos, Miyazaki escolhe uma paleta sútil de cores, linhas claras e metáforas visuais belíssimas para trabalhar e consolidar seu estilo como cineasta. 


Cinéfilos ou não, crianças ou adultos, A Viagem de Chihiro é um filme para todos os públicos. O próprio nome original já indica sua proposta ao nomear a obra como Sen to Chihiro no kamikakushi — a viagem de Sen e Chihiro, sendo kamikakushi uma espécie de viagem espiritual. Em outras palavras, uma viagem espiritual de duas pessoas em uma só. E para aqueles que também cresceram assistindo o filme vão sentir um outro tipo de viagem que experienciei: uma viagem de volta à infância, ao mundo da imaginação no qual tudo é possível. Só não se esqueça seu nome!

Título Original: Sen to Chihiro no kamikakushi

Direção: Hayao Miyazaki 

Duração: 125 minutos 

Elenco: Rumi Hiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki, Takashi Naito, Yasuko Sawaguchi, Tatsuya Gashuin, Ryunosuke Kamiki, Yumi Tamai, Yo Oizumi, Koba Hayashi, Tsunehiko Kamijo, Takehiko Ono, Bunta Sugawara, Noriko Kitou, Shiro Saito e Ken Yasuda

Sinopse: Chihiro é uma garota de 10 anos que não está nada feliz com a mudança de cidade. Na viagem, ela percebe que seu pai se perdeu no caminho para a nova cidade, indo parar defronte um túnel aparentemente sem fim, guardado por uma estranha estátua. Curiosos, seus pais decidem entrar no túnel e Chihiro os acompanha. Ao chegar numa cidade sem nenhum habitante, os pais da garota decidem comer a comida de uma das casas, enquanto a menina passeia. Ela encontra com Haku, garoto que lhe diz para ir embora o mais rápido possível e ao reencontrar seus pais, Chihiro fica surpresa ao ver que eles se transformaram em gigantescos porcos. É o início de sua jornada por um mundo fantasma, povoado por seres fantásticos, no qual humanos não são bem-vindos.

Trailer:


O que você achou do filme? Gosta das obras do Studio Ghibli? Essa é a primeira vez que assiste A Viagem de Chihiro? Deixe suas respostas aí embaixo nos comentários ou a Yubaba pode aparecer para uma visitinha 👾

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