Os silêncios do nacionalismo em O Resgate do Soldado Ryan (1998, de Steven Spielberg)



Um dos grandes clássicos da TV aberta é com certeza O Resgate do Soldado Ryan. Apesar de sua duração bem acima da média para os filmes que figuram nas sessões noturnas dos canais brasileiros, é pouco provável que qualquer pessoa com televisão não tenha pelo menos visto a chamada do filme. E não há outra forma de colocar isso, mas O Resgate do Soldado Ryan é um filme que merece a posição que teve e ainda tem no meio cinematográfico, pois é um bom exemplo de como a reconstrução de gêneros e temas já “batidos” no cinema podem reviver e impressionar o público.

O longa narra a história de um grupo de soldados estadunidenses que, em pleno momento decisivo da Segunda Guerra Mundial, recebem a missão de resgatar e enviar para casa James Ryan, um jovem soldado que perdera seus três irmãos também para a guerra contra os Países do Eixo; sendo agora o último descendente vivo de sua família. Cada soldado do recém formado batalhão de resgate precisa lidar com o conflito de talvez nunca mais retornarem aos seus lares, arriscando oito vidas para salvar uma que não é decisiva para a resolução do conflito internacional.

O ritmo que a história é contada chega a ser alucinante. Mesmo sendo um filme grande, 2h50min de duração, a sensação que temos é de que não possui nem metade disso, sendo fluído e extremamente cativante. A meia hora inicial retrata o 6 de Junho de 1944, o Dia D, data em que soldados estadunidenses, canadenses e britânicos desembarcaram em Omaha, uma praia francesa na Normandia, dando início à derrocada investida à Alemanha Nazista. É, com certeza, uma revolução no quesito cenas de guerra. É intensa, de tirar o fôlego e cruel. Outros filmes já retrataram as mazelas da guerra de forma tão boa ou melhor, como o traumatizante Vá e Veja, mas há uma renovação de tecnologia e estética em mostrar alguns pontos aqui que deixam a apresentação do filme praticamente perfeita. Não há como não ser fisgado pelo terror ali representado.

As cenas em questão custaram 12 milhões de dólares (17% dos 70 milhões totais que o filme custou). A precisão fora tamanha que há entrevistas com veteranos do Dia D afirmando que o que retratado ali é fidedigno até demais, no ponto uma linha direta de apoio aos veteranos de guerra ser criada; como forma de prevenção a possíveis gatilhos causados pelo filme.




A direção de Spilberg é certeira e talentosa. Ele acerta, e muito, no jogo de câmera caótico, imergindo o espectador dentro do caos das cenas de batalha e da realidade dos soldados em pânico. Ainda, o contraste de certas cenas sem trilha sonora, compostas apenas pelos ruídos de tiros, gritos e explosões, intensificam e proporcionam todo esses sentimentos que chegam a ser quase palpáveis. Ainda, a produção do longa contratou o historiador Steven Ambrouse, especializado na Segunda Guerra Mundial, como consultor para deixar o todo mostrado extremamente fidedigno. Como também contratara um veterano da marinha e uma quantidade imensa de soldados como consultoria, figuração e treinamento de elenco.

Elenco esse que demonstra muita sinergia e envolvimento, fazendo um show de atuação, principalmente Tom Hanks. A relação dos oito soldados é muito bem construída, dando pequenas margens para humor, empatia, implicância e até mesmo raiva. Dado o contexto caótico e cruel que temos como início da história, ficamos com receio a todo momento em que um membro do pelotão corre perigo. Esse tipo de sentimento só é alcançado com boas atuações encaixadas em personagens bens escritos, em cenas bem dirigidas.

Pois bem, o que aqui deixo claro é que a qualidade técnica de O Resgate do Soldado Ryan é imensa e inegável. Porém, existem elementos que impedem o filme de ser perfeito. O filme tenta a todo momento justificar a jornada do pelotão de resgate de James Ryan; como último filho vivo de sua família, seria tão importante quanto, ou mais, do que a guerra em si. Parece uma ideia vendida de que todas as vidas importam, mas, ao mesmo tempo, temos a constante reafirmação de que o coletivo é maior e mais importante do que o individual. O conflito entre a parte pelo todo, ou o todo pela parte, não é resolvido.

Na mesma direção, há um visível inchaço na participação dos E.U.A. na Segunda Guerra. A bandeira flamejante que abre e encerra o filme, como também no recorrente discurso acalorado sobre a liberdade a ser defendida e exportada para os países europeus, apostam um nacionalismo que veste todo um caráter heroico em cada ação feita, em cada bala atirada. Em alguns vários momentos do filme, temos a sensação de que somente os E.U.A. lutavam naquela guerra, sendo eles próprios os únicos responsáveis derrota dos Países do Eixo, ou mesmo o único país a sacrificar a perder pessoas.

Afinal, em plena Segunda Guerra Mundial, guerra essa que consumia boa parte do continente europeu, somente localizamos falantes de inglês? A participação dos E.U.A. na guerra fora assim tão portadora da liberdade e salvadora dos povos?
 

Pode parecer um questionamento meio sem nexo quando pensamos unicamente na função de entretenimento de um filme, mas há certos perigos nessas concessões feitas ao cinema. Não é novidade o debate de como o que vemos em tela influencia na construção do imaginário coletivo. Verdades, gradativamente, tornam-se mentiras, assim como mentiras tornam-se gradativamente “fatos”.

Um dos casos mais famoso desse assunto é a Guerra do Vietnã. Há toda uma tese sociológica feita por Douglas Kellner de como um personagem em específico ajudara os E.U.A. em um momento de crise; pois armados até os dentes com tecnologia de ponta, perderam a guerra para os vietcongs. Com a baixa popularidade dessa empreitada do outro lado do mundo, anos depois da guerra, um herói é remodelado e exibido como o salvador de inocentes nessa mesma terra distante, recheada de vilões comunistas, armado de uma metralhadora e usando uma faixa vermelha na testa.

O ponto é que houve uma construção midiática dentro do tema, de tal forma que não é raro encontrar estadunidenses, e outros ocidentais, achando que a guerra fora vencida pelo perdedor (ou adolescentes vestindo-se como o herói e correndo pelos cinemas do país e apoiando as iniciativas do exército). Rambo 2, possuindo menor qualidade no sentido técnico, possui pontos convergentes no quesito ideológico e contextual com O Resgate do Soldado Ryan.

Se há poder de convencimento nesse tipo de filme, que busca majoritariamente o entretenimento, imaginem um filme com o calibre de sucesso de bilheteria e crítica de O Resgate do Soldado Ryan? Qual seria a capacidade de um filme desses em mesclar-se com o imaginário coletivo global e o sentimento imaginado de pertencimento coletivo chamado “nacionalismo”? Capacidade de acreditar em salvações e protagonismos, talvez.

Há uma armadilha ainda maior quando pensamos que todo o contexto mostrado teve a consultoria de historiadores e membros do exército, elevando a verossimilhança. É uma produção acurada no que se propõe, assim como seus silêncios parecem milimetricamente esquecidos.

O que corrobora com minha indagação é uma pesquisa feita em 1945, 1994, 2004 e 2015, em que franceses foram perguntados sobre qual país mais contribuíra na vitória contra a Alemanha Nazista. O resultado da pesquisa encontra-se abaixo, em gráficos (com a fonte do instituto que a realizara). 


O Resgate do Soldado Ryan é, sem dúvida, um filme excelente. Direção, fotografia, roteiro e atuação são praticamente impecáveis, casando qualidade técnica com entretenimento de primeira. O que ultrapassa essas categorias está na interação com o público de o que, como filme, veicula e reafirma como construção histórica, ainda mais quando há tamanha consultoria especializada.

Claramente não há uma forma concreta de afirmar que a produção tinha o intuito de moldar o imaginário coletivo em favor dos E.U.A. durante o conflito, mas é possível fazer a relação aqui estruturalmente, de alguma forma, dar voz aos silêncios que ali ecoam. 

 

Título Original: Saving Private Ryan

Direção: Steven Spielberd

Duração: 126 minutos

Elenco: Tom Hanks; Matt Damon; Tom Sizemore; Edward Burns’; Barry Pepper; Adam Golberg e Vin Diesel.

Sinopse: Durante a Segunda Guerra Mundial, o alto comando do exército estadunidense descobre que três dos quatro irmãos Ryan foram mortos em conflito. No objetivo de salvar a família Ryan do desaparecimento, o Capitão John Miller (Tom Hanks) e outros sete soldados são designados para salvar o último irmão vivo, sem saber exatamente onde ele está e se ainda está vivo. Juntos, iniciam uma busca perigosa em meio ao continente europeu em plena Segunda Guerra Mundial.



Trailer:
 
Bônus:

Alguns argumentos contidos neste pequeno texto tiveram como base ideias e dados contidos no capítulo Cultura da Mídia, Política e Ideologia: De Reagan a Rambo, do livro A Cultura da Mídia, escrito por Douglas Kellner; como também na matéria II Guerra: A Indústria Cultural Americana, Uma Fábrica de Fake News, do site Sputnik e na obra Comunidades Imaginadas de Benedict Anderson.


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