Crítica: Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre (2020, de Eliza Hittman)


Muito além das chamadas “histórias universais” de amor, heroísmo e luta, o cinema olha também, primordialmente no setor underground, para estudos de caso, nos quais temos um indivíduo específico, dentro de uma classe ou diferente fator social, sendo analisado a todo momento. Essas histórias, muitas vezes com viés realista e tom documental, conseguem ter o mesmo poder de grandiosidade das universais quando seu objetivo é atingido: tocar no âmago das questões humanas. Tendo isso em mente, a cineasta Eliza Hittman centrou sua ainda curta carreira como diretora em tais produções, que até o momento se revelaram escolhas certeiras, e motivo pelo qual ela foi destaque em diversos festivais com o aclamado Ratos de Praia, no qual debateu sobre a homossexualidade nas famílias de classe média baixa e a escape do cotidiano a partir do sexo virtual. Dessa vez, no entanto, Hittman escolhe como mote principal de Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre o aborto e suas ramificações, atingindo um novo patamar em sua filmografia com um longa sensível, tocante e ao mesmo tempo envolto de polêmicas.






Na trama, acompanhamos a jornada de Autumn, jovem de 17 anos interpretada por Sidney Flanigan, que ao descobrir estar grávida dez semanas, decide abortar. Um outro empecilho, no entanto, surge quando Autumn descobre que para poder realizar a operação sem que seus pais fiquem sabendo que ela esteve grávida, deve pegar um ônibus para Nova York, onde as leis de aborto para menores de idade são mais flexíveis. Acompanhada de sua prima Skylar (Talia Ryder), as garotas viajam com o pouco dinheiro que têm, numa jornada que se sustenta pela cumplicidade e confiança que possuem entre si.





E, nesse núcleo estabelecido pela dinâmica de confiança entre a protagonista e sua prima é que Hittman vê a oportunidade de desenvolver outros dramas sem perder a sutileza. Para além da linha argumentativa principal, o roteiro assinado por Hittman consegue muito bem concatenar assuntos da realidade feminina, como abuso, assédio e relações familiares conturbadas, fazendo-o com naturalidade, de modo que, ao longo da fita, sempre somos relembrados dessa problemática cotidiana opressora na qual a mulher está inserida a partir de pequenos atos e situações que elas sofrem aqui e ali. Dessa forma, mesmo que Autumn seja uma adolescente quieta, todas as suas ações e escolhas parecem fazer sentido em sua jornada, porque afinal, seus mais profundos silêncios são carregados de uma dor real e palpável, pois a presenciamos junto a ela. Talvez concordemos ou discordemos de seus caminhos, mas isso pouco importa, pois conseguimos entender cada uma de suas atitudes, graças aos pequenos detalhes de sua personalidade e contextos pontuais que o roteiro confere no desenrolar do longa.
Nisso, a novata Flanigan ganha espaço não para falar deliberadamente, mas sim para trabalhar com uma performance naturalista, de forma que suas poucas palavras ganham um enorme poder dramatúrgico num momento específico de rodagem, em que descobrimos o motivo pelo qual o título do longa é Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre. É um momento íntimo e de forte apelo emocional, e com certeza ficará na mente do espectador após o fim da sessão, bem como os apertos que Autumn e Skylar (Ryder também está bem no papel) passam para conseguir realizar a cirurgia. Além das atuações, a diretora opta por uma fotografia granulada e paleta de cores discreta, construindo uma aura intimista e que ressalta o tom realista da obra, finalizando com uma sóbria mas efetiva trilha sonora composta por Julia Holter (à qual, confesso, voltei algumas vezes após assistir ao filme).
Tendo em vista sua temática, é inevitável que a história gere controvérsias, desde os mais sucintos debates até discussões mais histéricas e carregadas de cunho político. A diretora consegue, no entanto, criar uma trama sóbria que não faz juízo de valor, deixando para que o expectador olhe para a jornada de Autumn e tire suas próprias conclusões, tendo material necessário para o debate. E é no cerne dessa sutileza e debate bem equilibrado dos personagens que o silêncio, tão presente durante os 101 minutos, dá vazão à empatia, à dor, e à sororidade na luta feminina e nos receios compartilhados pela mulher contemporânea. Um filme que, espero, ganhe destaque com o passar no tempo, pois além de bem realizado, ele se prova necessário.
Título Original: Never Rarely Sometimes Always
Direção: Eliza Hittman
Duração: 101 minutos
Elenco: Sidney Flanigan, Talia Ryder, Sharon Van Etten, Théodore Pellerin
Sinopse: Após descobrir que está grávida, uma jovem de 17 anos decide abortar. No entanto, para realizar a operação seguindo as leis estadunidenses, Autumn decide fazê-lo em Nova York, e embarca na metrópole acompanhada de sua prima Skylar.
Trailer:
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