The Leftovers e o Absurdismo Existencial


The Leftovers estreou em junho de 2014 já carregando um grande peso de expectativas antes mesmo de seu primeiro episódio estrear, afinal a série fora criada por ninguém mais, ninguém menos que um dos idealizadores de Lost, Damon Lindelof. Embora sua série anterior tenha terminado em meio a certas controvérsias, já que muitas fãs consideraram o final insatisfatório, muitos estavam ansiosos pela próxima viagem filosófica que Lindelof faria pelo audiovisual, e The Leftovers não decepcionou. O criador da famosa série sobre a ilha misteriosa já havia debatido alguns conceitos metafísicos em Lost, mas sendo uma série que se passava na TV aberta americana, havia um certo limite sobre até onde Lindelof e JJ Abrams (co-criador da série) poderiam ir em seus devaneios imateriais sem perder audiência. Mas no drama da HBO, Lindelof encontrou um veículo para se aprofundar nos temas que queria debater, assim entregando aos seus fãs uma narrativa hermética e intensa.


Considerando toda a complexidade da existência humana, a filosofia se empenha em buscar por alguma espécie de lógica através do caos existencial em que o indivíduo se encontra em sua jornada pela vida. E um conceito filosófico que exprime satisfatoriamente toda essa angustiante busca por sentido é o Absurdo. Esse conceito foi originalmente criado pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard no final do século 19, mas tornou-se mais disseminado com a publicação do livro O Mito de Sísifo do filósofo e romancista argelino Albert Camus. O Absurdo diz respeito a um embate entre a necessidade humana de encontrar uma razão inerente para todas as coisas, em especial sua existência, e a incapacidade do mesmo em alcançá-la. Essas questões referentes ao Absurdo são abordadas de forma complexa e profunda por Lindelof em The Leftovers, com personagens perdidos e quebrados tentando desvendar algum tipo de coerência no pandemônio em que se encontram.




O drama da HBO narra o cotidiano de alguns moradores de uma cidade estadunidense após um evento que afeta todo o mundo e fica conhecido como “A Partida Repentina”, onde 2% da população do planeta simplesmente desaparece sem deixar qualquer vestígio. Esse acontecimento causa uma subversão na ordem social, transformando completamente a vida dos indivíduos, tanto os que foram afetados diretamente perdendo entes queridos, quanto os que simplesmente assistiram ao fenômeno passivamente. O mistério desse desaparecimento impede que os personagens sigam em frente com suas vidas, pois ele reconfigura completamente suas noções de realidade os tirando o pouco de certeza que tinham. Alguns personagens se colocam em situações extremas desafiando seus limites e outros se juntam a seitas e grupos delegando ao coletivo uma forma de resolver suas inquietações. Todos eles simplesmente buscando estar em controle novamente.


O protagonista da série Kevin Harvey, interpretado extraordinariamente por Justin Theroux, funciona como uma espécie de homem absurdo. Um homem que estava inconsciente sobre as problemáticas de sua existência até que foi acordado pela Partida Repentina. A partir desse evento o protagonista passa a se encontrar em um lugar de incerteza, vendo tudo que conhecia se desintegrando, em especial sua família. Kevin fora um dos “sortudos” que não perdeu nenhum membro de seus familiares para Partida, mas as repercussões do evento foram tão fortes que seus entes queridos, em meio a desordem, precisaram ir buscar individualmente suas próprias respostas, assim desmembrando o núcleo familiar. Kevin passa, então, a se encontrar em situações estranhas, se obrigando a questionar toda sua percepção de realidade e, assim, tomar atitudes até então desconhecidas para ele. Sendo um homem absurdo, mesmo contra sua vontade, Kevin precisa investigar todos os aspectos dessa sua nova consciência sobre esse estranho novo mundo do qual faz parte.




A esposa de Kevin, Laurie, que teve uma perda considerável durante a Partida, não consegue de forma alguma lidar com essa dor por conta própria, e nem compartilhar esse sofrimento com sua família. Ela é uma dos quais acaba entregando ao coletivo essa angústia que a consome se juntando, assim, a uma seita conhecida como “Remanescentes Culpados”; um grupo cujo único objetivo é não deixar que ninguém esqueça a Partida Repentina e siga em frente depois do ocorrido. Com essa atitude Laurie comete o que Camus chama de suicídio filosófico, ou seja, ela delega suas inquietações sobre as incertezas da vida a uma espécie de religião, se  desfazendo da responsabilidade de ter que lidar com essa aflições diretamente. Laurie precisa de uma fuga, uma razão inerente para tudo aquilo que não compreende, e encontra uma resposta fácil nos Remanescentes, que lhe entregam uma motivação para continuar existindo nessa realidade reconfigurada.


Tom, o filho mais velho de Laurie, adotado por Kevin depois que os dois se casam, também busca uma fuga, porém encontra esse escape numa figura messiânica, o Santo Wayne, que promete uma solução para toda aquela dor trazida pela Partida Repentina. Tom acredita fielmente que Santo Wayne representa uma resposta para o caos desse novo mundo e, ao se juntar a esse suposto Messias, ele encontra um propósito, uma finalidade inerente a sua existência nessa realidade caótica.


A figura messiânica funciona para Tom como uma solução para o problema do Absurdo, assim como também a seita apocalíptica para Laurie. Porém, eventualmente, os dois percebem que essas respostas são efêmeras e não solucionam de fato o vazio que sentem sobre toda essa desordem existencial causada pela Partida Repentina. 


A relação da série com o conceito do Absurdo é tão palpável que há uma cena no episódio piloto onde é possível perceber que Tom está lendo um livro de Camus, O Estrangeiro, sobre um homem apático que descobre sobre a morte da mãe, e pouco tempo depois se envolve em um crime. A narrativa do livro aborda várias temáticas relacionadas ao Absurdismo, trazendo questionamentos perspicazes sobre a experiência humana, assim como a própria série faz.




Já a personagem Nora, interpretada por Carrie Coon com uma atuação extremamente cativante, é a que mais teve a perder diante da Partida Repentina, sendo separada de seu marido e filhos pequenos. A protagonista é, talvez, a personagem mais complexa da série, lindando com seu luto de maneiras completamente inesperadas e que, em momentos, podem até parecer contraditórias, mas esse é exatamente o trunfo da personagem: ela, como qualquer ser humano, tem suas próprias contradições e incoerências e nem todas as suas atitudes seguiram princípios lógicos. Nora não sabe o que fazer, não sabe como reagir, não sabe se deve ou não seguir em frente. Diferente de Laurie e Tom, Nora não busca conforto coletivo e espiritual, mas também não se entrega as estranhezas daquela nova realidade como Kevin. Seu confronto é individual, consigo mesma. Nora enfrenta a si mesma na esperança de encontrar um alívio para uma dor que não tem cura.


The Leftovers se provou uma obra contemporânea extremamente complexa que faz uso de um contexto sobrenatural para construir uma narrativa instigante e arrojada sobre vários tópicos referentes a filosofia. A série usa brilhantemente esses elementos fantásticos para investigar os aspectos mais humanos de seus personagens, e mostrar como certas fatores de nossa experiência são mais universais do que imaginamos.


Título Original: The Leftovers

Direção: Peter Berg e outros

Episódios: 28

Duração: 51-72 min

Elenco: 
Justin Theroux, Carrie Coon, Amy Brenneman, Chris Zylka, Margaret Qualley, Liv Tyler, Ann Dowd e Christopher Eccleston

Sinopse: 2% da população do mundo desaparece misteriosamente reconfigurando a vida das pessoas permanentemente


Trailer:


Não perca a experiência incrível que é The Leftovers.

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