Crítica: O Corcunda de Notre Dame (1996, de Gary Trousdale e Kirk Wise)


Os anos 90 estavam no auge, assim como a safra de animações da Disney. Depois de emplacar sucessos estrondosos como A Pequena Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, O Rei Leão, Pocahontas, dentre outros, O Corcunda de Notre Dame estreou em 1996 com um pouco menos de barulho e sucesso, embora ainda com bons resultados. Uma série de coisas levou a isso: um filme com menos ação e mais musical, um tanto mais sombrio e maduro do que os anteriores. Porém, com o tempo a obra tornou-se cult e bem mais respeitada, apesar de alguns adendos. Revisto hoje, na verdade a animação é ainda mais atual. 



O único ponto negativo a se comentar com relação à obra é o fator adaptação. Baseado no romance de Victor Hugo, um texto bastante complexo e pesado, onde todas as personagens são sujas, com claros defeitos e atitudes às vezes perversas, o roteiro adaptado da Disney é obviamente mais limpo, onde as personalidades são mais delimitadas entre mocinhos e vilões. Então, os fãs da obra literária obviamente torcem o nariz para essa adaptação, ao menos em partes. Mas, ironicamente, esta é uma das melhores adaptações do livro em questão, não em termos de fidelidade, mas em termos técnicos cinematográficos. Ora, mesmo se uma obra não for fiel ao material de origem, ela precisa ao menos funcionar como cinema, e isso o filme faz muito bem. 


Com cerca de uma hora e meia, embora com pouca ação, é um filme ágil, que desde o início se apresenta de tal forma, onde fica claro o foco narrativo que o texto abordará, e isso se mantém até o final. Vemos assim a tristeza do nosso amado Quasimodo, o corcunda que toca o sino da Catedral de Notre Dame, sob os maldosos “cuidados” do Juiz Claude Frollo, homem extremamente religioso e rigoroso com as leis, caçando os “marginalizados”, como estrangeiros, ciganos, etc. Febus é o Capitão da Guarda de Frollo, seguindo as ordens do superior, mas aos poucos vai-se abrindo os olhos dele sobre as maldades em volta. É quando a sedutora e valente cigana Esmeralda desafia Frollo, que a trama emplaca, com os três personagens masculinos encantados por ela. Teria o “deformado” Quasimodo alguma chance com Esmeralda, já que Frollo é perverso e Febus o seu cego Capitão? 


São vários os fatores interessantes inseridos no roteiro da obra. Mesmo que diferente do material de origem, temos algumas nuances que ao menos fazem referências breves e sutis à tal obra, mesmo que de maneira leve e passível do público infantil. Uma delas é o espírito anarquista que se aborda, onde os heróis são personagens que normalmente vivem à margem da lei, tornando assim o Estado e a Igreja – aqueles que detém o poder – como verdadeiros vilões. 

Note que Quasimodo é um órfão deformado que vive escondido, Esmeralda e os demais ciganos são tidos como ralé, Febus é um soldado desertor, que deixa seu posto ao perceber que o exército não protege, mas só faz aquilo que os poderosos ordenam. Todos são indivíduos considerados inferiores, alguns vistos como criminosos e cuja vida corre risco de pena de morte. É ousado trazer boêmios, estrangeiros, mulheres que ganham dinheiro dançando e fugitivos como heróis, representantes do povo, pessoas simples e que gritam por liberdade – grito literalmente exaltado por Esmeralda em determinada cena. “-Liberdade!” ela diz em alta voz, desafiando o poder judiciário e religioso de Frollo, em praça pública. 


Este anarquismo acaba tornando-se algo extremamente atual. Em tempos polarizados onde tende-se a exaltar poderosos e renegar ou marginalizar figuras que desafiam o poder dos grandes, desafio por pura liberdade artística ou de expressão, essa animação torna-se potencialmente necessária. Vivemos em tempos em que alguns poderosos políticos e religiosos tendem a distorcer fatos e exaltar o patriotismo, o dinheiro, o militarismo, exaltar isso acima do povo, dos mais humildes, algo extremamente errado e maligno. E a quem ousa reclamar disso, sobra o rótulo de vagabundo, de marginal, além de outros adjetivos. 

Infelizmente temos vivido algo assim em alguns lugares, como no Brasil. Temos o exemplo do cinema nacional, cuja parcela de diretores tem criticado nossa atual política extremista. Em contrapartida, o governo tem diminuído o poder cultural, atacando órgãos e fazendo ainda com que parte do povo acredite cegamente em coisas distorcidas, desmerecendo a arte e a informação. Então, assim como na animação, bater de frente com meros ideais fascistas, torna-se um ato revolucionário. 


Nota-se então que o filme tem mais a oferecer para os adultos do que para as crianças. Com mensagens maduras, o filme também traz a hipocrisia e obstinação do clero religioso. Numa polêmica cena, nota-se que Frollo, todo inflado de sua arrogância, na verdade nutre desejos ardentes por Esmeralda. A sensual dança da moça faz parte do seu imaginário, deixando-o exausto à noite (então aqui usa-se a imaginação de como ele fica exausto). Um clérigo, ardendo de paixão por uma pagã, pagã esta com mais honra e coragem que o próprio. 


Em quesitos técnicos, a animação em 2D é lindamente desenhada à moda antiga, com belos traços e cores, com algumas cenas de encher os olhos, na reconstituição de lugares históricos da França, além de uma bela direção de arte. Se existe aqui um deleite visual, o mesmo pode-se dizer do deleite sonoro. Nossos ouvidos são agraciados com belas canções. Não todas, mas boa parte delas são bonitas e a letra faz parte do andamento da narrativa, colocando a obra num patamar musical. 

O Corcunda de Notre Dame preenche os olhos, os ouvidos, o coração e a mente, em uma animação subestimada, cujo passar do tempo está fazendo justiça. Mais atual do que nunca, o filme nos lembra que as pessoas são mais do que a aparência, mais do que rituais religiosos vazios e mais do que o poder e as riquezas ostentam. Na verdade, as pessoas mais belas são aquelas que estão bem longe de tudo isso. 


Título Original: The Hunchback of Notre Dame

Direção: Gary Trousdale e Kirk Wise

Duração: 91 minutos

Elenco: Tom Hulce, Demi Moore, Tony Jay, Kevin Kline, Paul Kandel, Jason Alexander, Charles Kimbrough, David Ogden Stiers, e Mary Wickes.

Sinopse: em Paris, durante a Idade Média, vive Quasímodo (Tom Hulce), um corcunda que mora enclausurado desde a infância nos porões da catedral de Notre Dame. Até que, um dia, Quasímodo decide sair da escuridão em que vive e conhece Esmeralda (Demi Moore), uma bela cigana por quem se apaixona. Mas para conseguir concretizar seu amor Quasímodo terá antes que enfrentar o poderoso Claude Frollo (Tony Jay) e seu fiel ajudante Febo (Kevin Kline).

Trailer:
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