O Cinema como forma de distinção: o filme bom, o filme ruim e o que temos a ver com todos eles

Donnie Darko (2001, de Richard Kelly)
É comum vermos o cinema sendo usado como uma forma de distinção. Apontar filmes como diferenciais para que alguma pessoa crie uma legitimação ou superioridade dentre outras é, com algum pesar, a forma como o mundo dos fãs da sétima arte funciona. Quem nunca conheceu algum cinéfilo que aponta falhas no gosto alheio, dizendo que um filme é dito como ruim por cair nas graças do público (famigerado mainstream), mesmo que este também tenha caído nas graças da crítica, ou mesmo na incredulidade de que alguém não tenha assistido Donnie Darko ou Clube da Luta, duvidando até da capacidade de crítica da pessoa em questão. O tema deste especial é justamente essa forma nada amistosa que o cinema é usado e suas consequências em nosso meio.

Começando pela capacidade classificá-los como bons e ruins, sempre há uma discordância, para não dizer caos, em como estruturar um método de avaliação que permita colocar Cinderela Baiana e A Chinesa dentro da mesma hierarquia, ou sistema de notas. Dentro da impossibilidade de recortar o autor de sua obra, assim como o crítico de suas opiniões e formação, entramos em um dilema ainda maior para avaliar. Mas afinal, para que avaliar? Qual a necessidade de classificar obras que, em uma forma de ver a arte, foram feitas para tocar diferentes pessoas de diferentes formas? Não haveria, portanto, um caráter tão intimista na relação entre obra e público que qualquer opinião que não seja a sua para com o que está sendo visto/assistido/admirado deva ser ignorada?

Cinema Paradiso (1988, de Giuseppe Tornatore)

Pois bem, aqui entramos no dilema dos dilemas de tudo o que produzimos quando estamos inseridos na sociedade: estamos produzindo coisas inseridos em um meio social, a sociedade. Isso acarreta em uma representação de nossos costumes, nossas culturas, nossas ideologias, dentro daquilo que estamos fazendo, assim como dentro daquilo que estamos julgando. Então vamos para o choque: se o que produzimos é socialmente construído, o que gostamos e como gostamos também é socialmente construído.

Há um recorte que perpassa inúmeros fatores, como gênero, raça, classe, escolaridade… Enfim, tudo o que nos define como sociedade acaba por relacionar nossa posição como julgadores, ou apreciadores, de qualquer coisa à que estejamos ali, no momento, conectados. O que coloca isso como um problema é a forma como todas as artes (música, teatro, dança, pintura, escultura, arquitetura, literatura, escultura e fotografia, HQ’s, vídeo game e arte digital) são utilizadas como formas de distinção. A começar pela própria forma de denominar o que é arte e o que não é. Um leitor atento vai reparar que tal classificação não é nada justa, e questionar quem define tal coisa é o primeiro passo. A lógica de definir o que é arte e o que não é, vem de uma concepção de “lutar para entrar, depois lutar para que ninguém mais entre”. A questão é conseguir um selo, uma afirmação de posição como arte, e depois disso não deixar que ninguém mais consiga esse selo.

Meninas Malvadas (2004, de Mark Waters)

Quem define tal ponto quer exatamente esse poder, e o selo de ter tal poder. Definir o que deve ser apreciado e o que deve ser renegado diferencia pessoas dentro de um mesmo universo. Daí a realidade dessas artes, são todas utilizadas como forma de separar, segregar e excluir. Daqui nasce a diferença social entre o quadro de paisagem vendido na feira e o quadro azul com um círculo vermelho sendo exibido em um museu de arte contemporânea. Juntamente com a avaliação das questões estruturais de como ambas foram feitas, podemos colocar em evidência o local em que estão inseridas e expostas. O mundo da arte é repleto, quase que lotado, de pessoas como o personagem Paul de Meia-Noite em Paris, abutres desses ambientes, a espreita de pessoas leigas para mostrar o quanto aquele mundo restrito pertence a eles e não aos demais.

Meia-Noite em París (2011, de Woody Allen)

Tá, mas e daí? Onde entra meu Vingadores: Ultimato nisso tudo? Pois bem, no auge do desenvolvimento do universo cinematográfico, no século XX, o baque de uma nova forma de arte que possibilitou várias pessoas ao redor do globo em assistir à mesma obra, ao mesmo tempo, tirando a percepção de qualquer ideia de único, subvertendo nosso breve conceito de como o acesso aos meios artísticos era regido. Se antes precisávamos ir até um museu específico para admirar algum quadro e escultura, ou mesmo esperar por uma peça de teatro, viajar até algum teatro próximo para que possa ser assistida, o cinema quebrou essas barreiras e veio até nós. Hoje, na dimensão de estreias simultâneas em todo mundo, para não falar a instantaneidade do streaming, nem temos uma dimensão correta do que hoje classificamos como produção de um país X ou Y, visto a tamanha correlação das produções e distribuições.

Rambo (1982, de Ted Kotcheff)
Mas, ao passo que os filmes como peças físicas passaram por todo esse processo de horizontalização, também temos o reforço do elitismo entre as artes, mas dessa vez em percepções diferentes, que embora já fossem carregadas pelas demais formas de arte, agora são de vital importância: a ideologia em meio a que foram formadas, a linguagem que são executadas e a mensagem que carregam, dividem o público, gerando gostos específicos que recortam elementos socialmente construídos como gênero, raça e classe.
Cidadão Kane (1941, de Orson Welles)

Ainda, a própria necessidade de uma restrição física dos espaços em que obras de arte são expostas e o preço da entrada, torna este mesmo gosto de recorte social como uma forma de distinção entre aquilo que é considerado por uns como aproveitado e seu contrário (lembra da tela do quadro azul com um círculo vermelho?). Então, com essa revolução cinematográfica dentro do contexto, é dada a sensação de que a aura das obras de arte está agora diluída dentre muitas, quase perdida, e cabe a este mesmo grupo crente e frequente da necessidade desses espaços restritos a caçá-los e indicá-los como destoantes da grande massa de produções. Isso soa problemático? E é mesmo.
O cinema como sétima arte, assim como suas outras irmãs, são elitistas. Quero dizer por isso que a forma como diferenciamos arte boa de ruim, de produções que devem ser lembradas e ovacionadas, em detrimento de outras, é regida por questões, como já dito anteriormente, de classe. Os códigos para apreciar um filme considerado de qualidade, assim como a capacidade de identificá-los no meio da multidão, são passados por aqueles que, dentro do recorte, detêm esses códigos, esse selo de qualidade. Ou seja, aquele seu amigo que assiste os filmes do Tarkoviski e te julga por gostar de Velozes e Furiosos, pode estar na tentativa de se colocar acima, utilizando desse universo e fluência nos códigos de o que é um filme bom e ruim.
 Stalker (1979, de Andrei Tarkovsky)
Velozes & Furiosos 6 (2015, de Justin Lin)

Como,
então, avaliar um filme? Ou mesmo se é possível de a crítica ser executada de
uma forma não excludente, de forma que, para quem está lendo, seja
um guia de que se aquele filme, para si, será prazeroso.
A impressão que fica é de que todo esse universo está longe da possibilidade de mudança, algo intrínseco à sua existência, como os alicerces de um prédio em que nós apenas entramos e saímos, sem qualquer poder de modificação. Ou seja, não há escapatória de ser amante da sétima arte sem ser uma pessoa em busca de distinção perante os demais. 

Mas calma lá, ainda há esperança. Podemos dizer que existem três fatores a serem levados em conta ao comentar, indicar e criticar um filme: estrutura, afeto e contexto. Em estrutura, ficam os elementos fílmicos, como fotografia, montagem, roteiro, direção, atuação… Tudo aquilo que faz de um filme um filme. Afeto, são as opiniões que nós, como pessoas, formamos ao assistir o filme, mas baseadas em situações da vida, nosso eu com  a obra. Contexto, está no ambiente social, histórico, geográfico e afins em que o filme fora lançado. Os três pontos são bem diferentes, mas, ao mesmo tempo, correlatos.

A Invenção de Hugo Cabret (2011, de Martin Scorcese)

Tal noção de várias formas de como criticar um filme, possibilita alguns entendimentos que, de uma forma reta e solitária, gerariam opiniões polêmicas.  Pantera Negra, por exemplo, insere-se nos três pontos de formas bem diferentes. Como estrutura, o filme possui pontos ovacionados pela academia e público, como figurino, tema… mas recebe críticas com relação ao formato de roteiro. Um fã do universo MCU, por exemplo, acostumado e já conquistado pela tal fórmula, pode achar o roteiro uma questão nada demais, inclusive muito boa. Em questões sociais, é inegável a importância de um super-herói negro e todo o arcabouço da cultura de Wakanda. Há uma matéria no site comentando o sucesso do longa e o porquê disso gerar incômodo que vale a pena conferir.

Pantera Negra (2018, de Ryan Coogler)

Perceber que uma crítica é composta desses três pontos, deixa o valor de uma nota mais relativo. Porém, cada um deles equilibra o outro, deixando claro para alguns discursos que de nada adianta fazer uma cruzada misógina contra Capitã Marvel utilizando o argumento do “gosto pessoal” se todos os outros forem ignorados. Ou mesmo Com Amor, Simon, que se trata de um filme clichê, com atuações nada memoráveis, com um recorte de público bem específico para comédias românticas, mas que ganha na representatividade da comunidade LGBT por, justamente, levar esses clichês ao público geralmente ignorado, que acaba por ser pano de fundo das outras obras. Pode parecer um pouco A Origem, fazendo a crítica da crítica de modo a criticar quem faz a crítica, mas exige apenas uma coisa de quem lê e quem escreve: senso crítico.

Com Amor, Simon (2018, de Greg Berlanti)



Os conceitos de filmes bons e ruins estão inseridos dentro de inúmeros recortes, e representam a forma como nossas ideologias agem no dia a dia. Criticar um filme dentro de contextos gerais e específicos, dentro de uma ótica determinada, pode gerar algumas complicações que delimitem certo grau de disparidade e segregação. O cinema, como todas suas irmãs, infelizmente, reproduz essa lógica, talvez com uma força até maior por conta de sua disseminação. Mas a possibilidade de olhar a crítica com outros olhos, diferenciando referenciais e destrinchando o filme em suas capacidades, pode elevar nosso senso crítico e levar a novas experiência da própria obra e, talvez, disseminar com menos recortes e fazer do cinema, e suas várias linguagens, um ambiente mais acessível. De forma crítica e aberta, ainda é possível amor pela sétima arte.

Cinema Paradiso (1988, de Giuseppe Tornatore)


Bônus:

Para aqueles que tiverem uma maior curiosidade sobre este debate, o ensaio teve como base para alguns argumentos o texto de Waltet Benjamin intitulado A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica e, principalmente, os livros As Regras da Arte e A Distinção, ambos de Pierre Bourdieu.

  
E para vocês, qual é a diferença entre o filme bom e o filme ruim? Deixe o que achou nos comentários e não deixe de acompanhar a programação do Minha Visão do cinema.

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