Crítica: Túmulo dos Vagalumes (1988, de Isao Takahata)

As produções do Estúdio Ghibli sempre carregaram certa obscuridade para mim. Na época em que assisti Túmulo dos Vagalumes pela primeira vez, aos quinze anos, havia recentemente tido uma experiência frustrante com A Viagem de Chihiro, um clássico do estúdio. Essa frustração vinha em grande parte pela intensidade de conceitos e visuais novos apresentados – muitíssimo diferentes das produções da Disney/Pixar com as quais eu era acostumado. Túmulo dos Vagalumes compartilha dessa mesma intensidade, mas em uma dimensão de tragédia e horror que o fez ganhar notoriedade justamente por se opor aos tons de aventura e fantasia das outras produções do estúdio asiático.

Não há como dizer que o filme não lhe avisa. A própria trama – um irmão e uma irmã que lutam para sobreviver no Japão devastado pela Segunda Guerra Mundial – não deixa muito espaço para leveza. O protagonista, Seita, é um adolescente perdido na ilusão de patriotismo e de que seu pai irá retornar da guerra junto com a vitória do Japão. Para além da guerra, a tragédia principal da trama provém diretamente de seu orgulho e sua inconsequência, o que faz todo sentido quando consideramos que ele tem apenas quatorze anos. Sua irmã, Setsuko, tem idade suficiente para acompanhá-lo, mas ainda é jovem demais para entender tudo que acontece ao seu redor. Ambos funcionam em uma mistura de momentos maduros com decisões que indicam o rumo inevitavelmente mórbido de seus destinos.
Tanto o estilo da animação 2D quanto os traços exagerados dos personagens – perfeitos para que seus rostos expressem uma variedade imensa de emoções – contribuem para que a obra transborde com sensibilidade. No contexto desolado da trama, esses fatores tornam-a muitíssimo mais marcante. O sentimento que fica quando assisto o filme novamente é de que a sensibilidade e emoção que o mesmo executa com tanta competência existem em função da tragédia, que é a experiência de seus personagens e permeiam tudo com um sentimento indelével de paranoia e tristeza. Mesmo os momentos de felicidade carregam um tom perverso porque parecem servir para demonstrar a inocência ou ingenuidade de personagens que se mantém otimistas e se recusam a agir de acordo com a gravidade da situação em que se encontram – seja por sua juventude ou orgulho.

Embora a personagem de Setsuko seja geralmente responsável pelos momentos mais tristes, a jornada pessoal de Seita não fica muito atrás em termos de impacto. O filme funciona melhor quando integra o drama individual dos dois, como na cena em que, após Seita ser agredido por roubar comida, Setsuko o segue até a delegacia – outro momento em que o orgulho de Seita direciona a história para seu fim trágico. Ao ver Setsuko emergindo da escuridão, seu corpo malnutrido e cheio de feridas, Seita não consegue conter suas lágrimas. Setsuko então se aproxima, pergunta o que houve e sugere que ele vá ao médico. A inversão dos papéis – Setsuko como a responsável e Seita como a criança – representa o pior pesadelo de Seita: não apenas seu país perdeu a guerra, sua mãe está morta e seu pai desaparecido, mas ele falhou na única tarefa restante: proteger sua irmã.

Encarando a produção para além de seus óbvios temas de sofrimento durante a guerra, a irresponsabilidade e o orgulho de Seita parecem funcionar não só em função de seu patriotismo, mas também dentro de um âmbito de expectativas inatingíveis de masculinidade e honra. Como homem e irmão mais velho, ele é ensinado e acredita piamente que tem a capacidade de cuidar de Setsuko independentemente das circunstâncias. Uma das razões que o leva a abandonar a casa de sua tia é justamente o fato de que ela o repreende por “não fazer sua parte” na luta armada – algo que o machuca porque, no fundo, Seita parece querer apenas ficar com sua irmã e esperar a guerra passar. Esse conflito entre o patriotismo exagerado e um desejo de apenas se manter é o que o leva a eventualmente tomar a decisão de abandonar sua segurança desconfortável em função de algo arriscado, mas muito mais atraente.

A história por trás da produção carrega tons ainda mais sinistros. Akiyuki Nosaka, autor do conto em que o filme é baseado, realmente perdeu sua família durante a Segunda Guerra Mundial e escreveu o conto como uma tentativa de se redimir por priorizar sua sobrevivência e perder sua irmã durante o processo. Dessa forma, o destino final dos personagens toma proporções mais trágicas ainda – um feito considerável quando o filme já é de uma tristeza imensa. As falas de Setsuko foram realmente interpretadas por uma criança da mesma idade que a personagem (quatro anos), fazendo com que o diálogo precisasse ser escrito em função do que a menina conseguiria dizer. O efeito desse esforço resulta em uma voz – e um choro, especialmente – que me acompanham até hoje. 
Conforme o final da história se aproxima, o peso da excelência com que a caracterização dos personagens é feita e o estilo de animação é tratado culminam em sequências que simplesmente não podem ser esquecidas. Ao final do filme, você se importa tanto com os personagens que qualquer reação, qualquer adversidade é sentida como um peso imenso – e a intensidade de tais adversidades aumenta e aumenta, gerando um sentimento que pode apenas ser descrito como horror. 


A trilha sonora de Michio Mamiya também merece ser mencionada por seus tons melancólicos – é o tipo de trilha sonora que você reconhece imediatamente quando ouve novamente.


Túmulo dos Vagalumes é uma obra de um impacto emocional inegável cujos recursos são utilizados com uma destreza inigualável e contribuem para uma experiência como poucas outras – da melhor e pior forma.

Título Original: Hotaru No Haka

Direção: Isao Takahata

Duração: 93 minutos

Elenco: Tsutomu Tatsumi, Ayano Shiraishi, Yoshiko Shinohara, Akemi Yamaguchi, Tadashi Nakamura
Sinopse: Japão, Segunda Guerra Mundial. Seita (voz de Tsutomu Tatsumi), um adolescente, precisa garantir sua sobrevivência e o bem estar de sua irmã menor, Setsuko (voz de Ayano Shiraishi), quando os dois perdem sua família e casa.

Trailer:

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2 thoughts on “Crítica: Túmulo dos Vagalumes (1988, de Isao Takahata)”

  1. Tive a oportunidade de assistir a este filme na Netflix à algum tempo e tenho a diz que me marcou imenso. Foi realmente o orgulho que levou Seita a abandonar a casa da tia, mas foi também a ingenuidade própria de uma criança. Ainda hoje fico triste com a história dos dois irmãos que não seria tão impactante se não tivesse sido contada do modo sublime como foi.
    Mundo da Fantasia

  2. Realmente, eu consigo ver um filme desse tipo facilmente entrando em algo muito melodramático e sem sentido, mas me parece que as escolhas e a tristeza da história toda são bem realísticas e justificadas!

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