Crítica: Que Horas Ela Volta? (2015, de Anna Muylaert)


Um dos filmes brasileiros recentes de maior sucesso de bilheteria e crítica não decepciona e cumpre com eficiência ao que se propõe. Trata-se da história de uma empregada doméstica, Val, e sua relação com os patrões, que ganha questionamento com a chegada de sua filha Jéssica, depois de 13 anos de convívio cordial. Retrata de maneira realista e crítica a relação entre as classes socioeconômicas típicas brasileiras, em clara herança de um passado colonial e escravocrata. Alerta de spoilers: nessa crítica serão apontados algumas cenas do filme, para discussão das problematizações.


O jeito brasileiro de lidar com a relação de classes é cínico e superficialmente amistoso, mas profundamente opressor e degradante. Ao compartirem a casa e a convivência diária, laços afetivos são criados, principalmente entre a babá e as crianças, mas sempre são pautados pelo abismo entre as classes. A relação entre patrões e empregada doméstica é um assunto já muito discutido, que é a prova cotidiana da opressão da elite, mas nunca vi um filme que abordasse essa temática de maneira tão realista e sutil. É um filme muito rico em conteúdo, que incentiva a reflexão sobre a sociedade brasileira.


O filme trata sobre as relações humanas; se subdividindo em duas temáticas que se entrelaçam: primeiramente sobre a tensão entre os patrões e empregados. Em segundo plano sobre a superficialidade das relações familiares. 


Na primeira cena do filme já entendemos o título e o tema da história: Val e Fabinho se abraçam, com saudades de sua filha e de sua mãe, respectivamente, que são ausentes. “Que horas ela volta?” pergunta Fabinho. No fundo, Val abre mão de criar a própria filha para criar o filho da patroa, assim como tantas trabalhadoras brasileiras.

No início do filme somos apresentados a Val, confortável com sua rotina, aparentemente com uma relação quase familiar com os patrões. A patroa Bárbara (ótimo nome, por sinal) diz aquela frase típica: “Val, você sabe que é praticamente da família”, deixando para a sequência do filme a hipocrisia da fala. Antes mesmo de a filha Jéssica chegar em São Paulo já vemos traços não tão amistosos de Bárbara em relação a Val, como quando ela compra um presente de aniversário para a patroa, que cinicamente fala para guardar para uma situação especial, mas no mesmo dia manda esconder rapidamente, com vergonha de utilizá-lo na presença de seus amigos aristocratas; esses que aliás, nem olham ou cumprimentam Val enquanto ela os serve. 


Escancarando que a convivência social (mesmo a mais elementar que seria entender que existe um outro ser humano ali) é exclusiva para pertencentes à classe alta. Ou quando ela “esquece” que a Val também faz refeições no dia, e não separa nenhum ambiente da casa para que ela se alimente. Resultado: a Val come de pé na cozinha.


Com a chegada de Jéssica na casa, as contestações começam, em contraposição à passividade de Val com as opressões vividas. Por exemplo, quando está conhecendo a casa e vê um quarto de hóspedes (3 vezes maior do que o da Val) completamente desocupado, enquanto as duas dividiam o quartinho de empregada com o depósito, ela pergunta se não pode ficar lá. Val fica desconsertada de vergonha, e os patrões, mantendo as aparências, aceitam o pedido, com um bufo de Bárbara. 


Uma boa cena que representa o desejo perverso da elite brasileira de manter as estruturas como estão é o momento em que a família conhece Jéssica. Ela diz que veio para prestar vestibular de arquitetura. “Na FAU?!” Pergunta Fabinho surpreso. Nisso, Bárbara solta espontaneamente, como um comentário inofensivo: “Nossa… Como o Brasil mudando…” Aparentemente uma frase verdadeira, mas com um tom classista tão comum nas frases da elite, como quem diz “até a filha da empregada tá prestando o mesmo vestibular que meu filho”. Esse sentimento também se expressa no incômodo da família quando Jéssica questiona ou afronta as regras de convivência estabelecidas.



Ao longo do filme vemos que Fabinho e Val tem a relação mais íntima e afetuosa da casa, em oposição às outras relações familiares distantes e baseadas mais na ideia pré-concebida de família do que na conexão genuína. Bárbara, estilista, tem vários amigos, está sempre no telefone ou dando ordens para Val; não dá um afeto, nem senta para conversar sobre a vida com o marido, nem com o filho. 


O pai, José Carlos, mais calmo e comedido, é simpático, mas não consegue levantar para pegar um copo d’água ou um guaraná, sempre pedindo à Val que o sirva. 


Com o aprofundamento da relação dele com Jéssica percebemos primeiramente sua carência, ao receber alguma atenção com conversas no almoço e elogios artísticos, e depois se revela seu mau caráter. Até levar Jéssica ao Edifício Copam, José Carlos parece ser amigável e atencioso, mas ao tentar ter relações sexuais com a menina no momento em que está promovendo, graças a sua condição social, algo que nunca foi acessível a ela, mostra um desejo que me parece uma herança cultural das mais repugnantes: do senhor de engenho que tem tesão pela filha da criada, como se sua posição de patrão passasse por cima de tudo, inclusive do fato de ela ser menor de idade. Isso poderia ser visto como um pequeno impulso instintivo, mas quando ele a pede em casamento, mostra seu verdadeiro eu: completamente solitário, fraco e mau
 caráter. 


A cena é desenvolvida de maneira que deixa o clima constrangedor e até patético para José Carlos, mas se formos analisar o momento que ele a pede em casamento, percebe-se que é quando ela não tem casa para morar, nem para onde ir; sendo até sádico ele oferecer o casamento, isso é, o acesso ao seu patrimônio, em troca do seu corpo ou atenção. 




Outra cena que explicita bem a temática do filme é quando Fabinho não passa no vestibular e é consolado com grande afetividade por Val, e, quando a mãe aparece ele não aceita seu carinho. A mãe reclama, e logo em seguida Val entra no quarto e conta que sua filha passou com uma ótima nota. Nisso, Fabinho vai consolar a mãe, que nega o afeto e sai do quarto. Essa cena é ótima, pois mostra a diferença entre a relação de Val com Fabinho: cuidadosa, com ternura; e da mãe com Fabinho: fria e distante. Ainda por cima, logo em seguida, a mãe fica indignada que a filha da empregada doméstica foi melhor do que o filho e se retira, não só esquecendo de consolar o filho, como recusando conforto dele; mostrando que o fato de Jéssica ter ido melhor é mais significativo do que a sua solidariedade com o filho não aprovado. 


Apesar de tratar de um tema ácido, o clima do filme é bem-humorado com algumas cenas engraçadas, o que facilitou para a apreciação do grande público, com destaque para Regina Casé que está muito bem no seu papel. Entretanto, é uma comédia apenas nas aparências, sendo um drama social forte, com críticas pesadas à elite brasileira, com suas opressões “disfarçadas” no dia-dia. 


Com o passar do filme as aparências amistosas vão se deteriorando à medida que Jessica questiona as regras de convivência social, que segundo Val “todo mundo nasce sabendo. Não tem que aprender”. De onde viria essa noção do que se faz e o que não se faz? Mais uma vez do passado escravocrata. Val “nasceu sabendo” pois provavelmente aprendeu com sua mãe, desde criança, como se portar em relação aos patrões. E sua mãe aprendeu com a mãe, que aprendeu com a mãe, e assim vai de geração em geração até o nosso sombrio e ainda recente passado escravocrata. Portanto essa cultura de regras de convivência entre patrões e empregados é uma herança histórica.


Quem mais se sente ameaçada pela quebra da cordialidade é Bárbara, que vira carrasca ao mandar por picuinha trocar a água da piscina porque supostamente viu um rato lá dentro e ao proibir Jéssica de andar pela casa. Nesse ponto acho que o filme se limita ao apresentar a patroa como malvada, pois pode passar a impressão equivocada de que a humilhação que existe é por conta de sua personalidade ruim; desviando a atenção da principal crítica do filme: é uma questão de classe, e o fato de existir esse tipo de trabalho é uma continuação cultural da escravidão. Se a personagem da Bárbara fosse mais boazinha, daria menos margem para interpretações que personificam nas atitudes específicas da patroa a tensão social que há entre os personagens.


A menina, a quebradora de tabus do filme, não se submete às atitudes racistas e tirânicas da patroa e sai de casa. Curioso que nesse momento do filme, Bárbara usa um tom super-autoritário ao falar com Val, deixando claro que as regras sociais são realmente arbitrárias, reforçando no grito sua posição de superioridade, não existindo racionalidade ou palavras que justifiquem seus atos. 


No final do filme, depois de sua filha ter passado no vestibular e ter chacoalhado os padrões de convivência da casa grande, Val tem coragem de entrar na piscina. Quando entra pela primeira vez em 13 anos, e se sente livre, quebrando barreiras, percebemos o quão opressor é o fato, tão comum e inquestionado, de a empregada morar na mesma casa, mas não poder usar a piscina, não tomar o sorvete dos patrões, dormir em um cubículo enquanto tem um quarto vazio ao lado, e não sentar nas mesas dos patrões, ainda que não tenha uma mesa para sentar. 


Nesse instante, Val tem um momento de claridade, de que na verdade o fato de ela ser empregada doméstica, morar na casa dos patrões, ter abandonado a filha pra mandar dinheiro, enquanto cuidava do filho de outra; tudo isso foi necessário por conta da sua condição social, mas que não precisava mais se submeter a isso, poderia estar com sua filha. O filme termina com essa mensagem otimista sobre o Brasil, com Jéssica sendo aprovada no vestibular, expressando que o Brasil está em transformação, e que existem possibilidades de mudança social e quebra das estruturas; Jéssica vai ser a primeira da família a não ser empregada doméstica. Realmente isso está acontecendo nos últimos anos, e é realmente uma importante ruptura na história das famílias brasileiras. 


Entretanto, ela largar o emprego e ir morar com a filha (que ainda iria prestar a 2° fase do vestibular) passa uma impressão de que é só não se submeter mais à opressão, e de que agora elas teriam reais possibilidades de uma ascensão social. O que no Brasil infelizmente ainda não é a realidade. Portanto achei o final do filme um pouco romantizado.


Por fim, Que Horas Ela Volta? é um ótimo filme sobre a sociedade brasileira e traz cenas muito bem pensadas, passando a mensagem do filme a cada detalhe do roteiro. Ainda é recente, mas acredito que vá se tornar um clássico do cinema brasileiro. Filmes como esse que discutem as relações entre as classes brasileiras no âmbito de uma metrópole, são muito importantes para a compreensão e reformulação da nossa sociedade. Outros ótimos filmes recentes que abordam o mesmo assunto de bons diretores são: O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho) e Casa Grande (Felipe Barbosa). 


Título Original: Que Horas Ela Volta?

Direção: Anna Muylaert

Duração: 112 Minutos

Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Teles, Lourenço Mutarelli.

Sinopse: Val (Regina Casé) é uma empregada doméstica em uma casa de elite de São Paulo. Cuida da casa e cria o filho da patroa, Fabinho (Michel Joelsas). Enquanto isso, sua Filha Jéssica (Camila Márdila), que tem a mesma idade que o menino, cresce longe da mãe em Pernambuco. Treze anos depois, Camila vai para São Paulo para prestar o mesmo vestibular que Fabinho e pede ajuda para a mãe. Quando Jessica começa a viver na casa grande e quebrar os protocolos de convivência da casa, os patrões começam a se incomodar e as estruturas começam a balançar.

Trailer

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