Crítica: Nós (2019, de Jordan Peele)

Nós é um filme de terror.” – Jordan Peele


*Alerta de Spoiler*
Em sua nova e ambiciosa aventura pelo cinema de horror, Jordan Peele explora ainda mais a psique humana com uma trama que trabalha inúmeros aspectos do que significa ser, de fato, um ser humano. Assim como já havia feito em Corra!, abordando a complexidade das questões raciais nos Estados Unidos de hoje, Peele novamente desenvolve sua narrativa incluindo críticas sociais pertinentes, porém dessa vez indo muito além do racismo. 


O diretor utiliza o máximo possível dos recursos visuais de que dispõe para compor seu enredo de horror e criticar a sociedade norte-americana, já deixando vários foreshadowings sobre o que está por vir no decorrer do filme. Como a cena da praia em que vemos toda a família caminhando pela areia com suas sombras perfeitamente delineadas no chão. Ou as imagens do evento “Hands Across America” que aparecem na propaganda enquanto a jovem Addy assiste televisão, assim como também a ilustração da família de mãos dadas no vidro do carro. Todos símbolos que funcionam para indicar ao telespectador as ameaças que os protagonistas enfrentarão.




É impossível assistir Nós e não tentar criar imediatamente paralelos com Corra!, porém as similaridades entre os dois filmes se resumem basicamente ao fato que ambos trazem para tela questões sociais referentes aos Estados Unidos. Algo bem parecido entre os dois filmes é o recurso do humor que está muito presente em ambos os longas, porém enquanto Corra! tinha no personagem Rod (Lil Rel Howery) um alívio cômico, em Nós o humor é intercalado dentro das cenas de horror sendo explorado quase o tempo inteiro e criando um certo sentimento de estranheza que intensifica o desconforto do espectador.


Os dois filmes trabalham suas temáticas de maneiras distintas, ao passo que Corra! é mais centrado nos temas que propõe, Nós não se preocupa em entregar diretamente ao público tudo que quer dizer. O novo terror de Peele expõe suas críticas dentro universo aterrorizante que elabora fazendo paralelos com a cultura americana e sua história de opressão. 


A trama não é fechada e objetiva como o primeiro filme, e traz a possibilidade de interpretações múltiplas sobre o que Peele quer criticar com seu roteiro, desde questões sociais até talvez ambientais. Isso sempre dentro do contexto americano já que os clones só existem nos Estados Unidos. E Peele parece o tempo inteiro estar criando conexões com a sociedade estadunidense e seus vários problemas sociais como por exemplo na cena em que Gabe pergunta à Red o que os clones são, e a única resposta de Red é: “nós somos americanos”. O próprio título original do filme pode ser considerado um paralelo com o país norte americano: Us = U.S (United States).


 



Minha interpretação inicial de Nós, que possivelmente mudará conforme eu assista o filme novamente (algo que farei com certeza), é que Peele talvez tenha idealizado o roteiro como uma parábola sobre a desigualdade social que os norte-americanos vivem. Os protagonistas tem cada um uma “sombra” que em teoria são eles mesmos – pelo menos biologicamente e talvez até em certa extensão de suas personalidades – e essas “sombras” vivem uma cópia da realidade dessas personagens, uma mera imitação, quase a alegoria da caverna de Platão. 


Enquanto as pessoas “reais” viviam e construíam suas vidas, os clones eram obrigados a apenas repetir as ações dos mesmos, sendo roubados da oportunidade de realmente viver. Ou seja, os clones são desprovidos da possibilidade de ter uma vida normal, são completamente marginalizados. E essa marginalização cria um sentimento de revolta entre eles por não terem tido as mesmas chances de suas duplicatas. Tanto que a primeira ação dos clones após atacar seus originais é tentar aproveitar aspectos da vida dos mesmos, explorando suas casas e utilizando seus pertences, como Dahlia (Elisabeth Moss) se olhando no espelho e passando o batom de Kitty.




E tudo isso fica um pouco mais claro com o plot twist no final no qual descobrimos a verdade sobre Adelaide que quando encontrou sua duplicata na infância foi, na verdade, substituída por ela. Addy e Red, embora uma seja a original e a outra o clone, tinham as duas a capacidade de ter uma vida próspera e feliz, porém uma teve a oportunidade para tal e a outra não, e ironicamente foi o clone que obteve essa chance de ter uma vida normal provando assim que no final somos todos apenas frutos da realidade em que vivemos.


As “sombras” se ressentem dos originais exatamente por terem sido roubados das oportunidades que eles tiveram. O comportamento violento das cópias não é inerente a eles e sim fruto do contexto desumano em que “viveram” no subsolo, assim como a criminalidade das sociedades está diretamente ligada à desigualdade social de sua população. É como se Jordan Peele dissesse: será que ainda seríamos os mesmos e viveríamos pelas regras da sociedade se não existíssemos dentro de nossos próprios contextos privilegiados? 

O diretor parece interessado também em questões do meio ambiente já que uma das razões do ressentimento de Red é que os originais não valorizam o mundo que vivem e aos poucos destroem o planeta. A chegada dos clones é quase um acontecimento pós-apocalíptico como se o mundo fosse acabar através de nossas próprias mãos. O versículo bíblico que aparece diversas vezes durante o filme, Jeremias 11:11, diz as seguintes palavras: Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei”. Esse mal do qual o versículo bíblico se refere poderia ser considerado nós mesmos, somos nós a causa da destruição do planeta e Peele faz uso de alegorias para representar isso. Claro que Nós é um filme extremamente complexo e o resumir à uma ou outra interpretação seria simplificar tudo que o longa representa. Fica claro que Jordan tinha intenção de debater múltiplos temas e deixar o telespectador pensando sobre o filme por um bom tempo.


Com relação às atuações, Lupita Nyong’o presenteia o público com o que talvez seja sua melhor atuação desde 12 Anos de Escravidão. Ela entrega um trabalho extremamente pensado tanto no desenvolvimento da protagonista Addy quanto de sua “sombra” Red. Nyong’o constrói sua Adelaide com extrema complexidade equilibrando sua personalidade imponente com suas vulnerabilidades. A protagonista, embora seja atormentada pelo seu “trauma” de infância – ou assim pensamos durante o filme -, utiliza desse passado  sombrio como forma de encontrar forças para sobreviver a essa ameaça que aterroriza a ela e sua família. Já sua atuação como Red é extremamente assustadora especialmente pelo trabalho vocal que Lupita desenvolveu para a personagem, dando à Red uma voz arrastada e fraca de quem tem grande dificuldade em falar. O resto  do elenco entrega uma atuação digna da obra de Peele, e talvez o elo mais fraco seja o filho mais novo interpretado por Evan Alex que entre Nyong’o, Winston Duke e Shahadi Wright Joseph entrega uma atuação bem pouco empolgante. Elisabeth Moss, embora tenha pouquíssimo tempo em tela, aproveita cada segundo desse tempo para brilhar especialmente como a “sombra” de sua personagem.


Nós é um filme de terror que em momento algum tenta se encaixar em uma fórmula, muito pelo contrário, ele tem uma narrativa experimental e segue uma linha de raciocínio próprio. O diretor não tinha intenção de entregar nada concreto ao público, e sim deixá-lo questionando os temas expostas na tela. Embora não seja perfeito e tenha certos problemas de ritmo, Nós é um filme que permanecerá no imaginário do fãs de cinema. Jordan Peele já deixou seu nome entre os grandes diretores da atualidade.


Título Original:
Nós

Direção: Jordan Peele

Duração: 116 minutos

Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Elisabeth Moss, Tim Heidecker, Shahadi Wright Joseph e Evan Alex.

Sinopse: Uma família sai de férias para sua casa de praia e é surpreendida por invasores, porém os mesmos são mais familiares do que eles imaginam.


Trailer:

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