Crítica: Todo Mundo Quase Morto (2004, de Edgar Wright)

Logo nos primeiros segundos, enquanto roda a vinheta da Universal Pictures, Todo Mundo Quase Morto já mostra a que veio; a abertura é acompanhada pela trilha eletrônica “mística” do clássico de George Romero, O Despertar dos Mortos, conseguindo ao mesmo tempo referenciar uma inspiração e ditar o clima para o resto da obra. O primeiro filme comercial de Edgar Wright (o britânico já havia escrito e dirigido A Fistful of Fingers, lançado de forma limitada) é exatamente isso, uma comédia de terror e sátira de/carta de amor ao subgênero de filmes de zumbis, mas que nunca se limita a isso, entretendo tanto os espectadores fãs dos mortos-vivos como os que caíram de para-quedas.


A história acompanha Shaun, um inglês comum de 29 anos que trabalha em uma loja de eletrônicos junto com adolescentes, pois nunca conseguiu conquistar nada na vida. Indignada com esse fracasso aparente está sua namorada Liz, já cansada de ir todas as noites ao mesmo bar Winchester e de nunca ter a oportunidade de conversar sobre novas oportunidades com seu namorado, preso no comodismo da rotina. As interferências externas também não ajudam no relacionamento: o melhor amigo de Shaun, Ed, é um fracassado ainda maior que ele, passa o dia todo jogando video-game em casa e vive arrumando problemas para seu companheiro resolver; os amigos de Liz, David e Dianne, também acabam interferindo muito na vida dela e não aprovam o modo como seu namorado a trata.


Todos terão, entretanto, que resolver seus problemas pessoais ou simplesmente ignorá-los pois, para surpresa da humanidade, uma epidemia zumbi se desenvolve e transforma simples cidadãos ingleses em devoradores de carne humana; Shaun terá agora que reunir seus amigos, mãe e padrasto e levá-los para algum lugar seguro antes que sejam infectados. A sinopse pode lembrar a de um filme de mortos-vivos comum em que as relações entre os personagens são esquecidas a favor da crítica ao instinto selvagem humano, porém essa é uma das grandes conquista da obra: o foco principal aqui é justo como cada um lida com essa situação e como ela afeta o relacionamento entre os integrantes do grupo.

Do ponto de vista dos personagens, o apocalipse parece mais um probleminha de fundo do que o grande vilão da história. A ascensão dos zumbis, quando analisada, não passa do veículo utilizado pelo destino para que Shaun possa finalmente ter um propósito, uma razão para sair de sua rotina. Consequentemente, o roteiro utiliza diversas situações costumeiras em filmes do gênero como analogias para conflitos passados e presentes na vida do protagonista e isso fica muito claro nas cenas de morte: todas têm um propósito para ocorrerem naquele exato momento, o arco do personagem é finalizado ali quando se redimem com Shaun ou aceitam seu destino.

Muitos classificam Todo Mundo Quase Morto como uma “rom-zom-com” ou “comédia romântica com zumbis” e pelo menos duas dessas três características funcionam perfeitamente. Grande parte da comédia extremamente eficiente do filme vem da mencionada forma como os personagens se relacionam; Ed, por exemplo, é muito próximo do protagonista e por isso os dois vivem ridicularizando um ao outro com uma química muito bem retratada e que lembra muito uma amizade verdadeira. O arco do padrasto abusa do humor seco ao representar uma sempre complicada relação com sua esposa e enteado; as patéticas tentativas de Shaun de agradar Liz conseguem ao mesmo tempo dar pena e causar risadas e o desprezo/inveja que David sente do protagonista é bem colocado. O espectador compra os protagonistas e ri com eles, por isso quando o roteiro conta alguma piada um pouco mais surreal você continua investido na história.

A parte de humor agrada, porém a “com zumbis” também não deixa nada a desejar; como mencionado anteriormente, Wright cria aqui uma carta de amor ao subgênero, recheando o filme de referências que vão das mais sutis como os personagens não gostarem de falar a “palavra com z” até as mais óbvias (“nós vamos te pegar, Barbara!”). Essa frequente auto-referência ajuda a obra a nunca se tornar cansativa, pois mesmo que utilize alguns clichês do gênero, acabam citando isso ou tornando piada. Isso, é claro, para quem conhece as inspirações, mas quem não conhece ainda está interessado nos personagens bem construídos e não quer vê-los serem destroçados pelos mortos-vivos.

Além disso, o filme, já com 13 anos de idade quando este texto foi escrito, envelheceu muito bem. A maquiagem dos zumbis e os efeitos práticos de “gore” convencem bastante; apesar de possuir valores de produção relativamente baixos, a obra é atmosférica do início ao fim devido ao pouquíssimo (inexistente, praticamente) uso de CG e o fato de que o roteiro não se sustenta com referências à cultura pop daquela época, apenas aos clássicos. Vale também comentar que o diretor, mesmo que este seja seu primeiro filme realmente comercial, já possuía muita experiência por trás das câmeras, principalmente com o divertido seriado Spaced (que compartilha alguns atores com esse filme), então a execução das cenas é muito bem dirigida.


Direção essa que chama atenção em praticamente tudo que é tocado por Wright desde sua revelação e aqui não é diferente, o britânico consegue fazer sua obra exalar energia e criatividade a todo momento, grande parte devido às excelentes formas como o filme foi montado e editado. Se você é fã do diretor, os elogios à edição provavelmente não soaram estranho, o montador Chris Dickens, que editou também Chumbo Grosso, torna a transição entre as cenas e acontecimentos dentro das próprias locações muito fluidas e dinâmicas. Movimentos de câmera para esconder as interrupções da narrativa, transições a partir de obstáculos passando na frente da lente e principalmente os micro-cortes de menos de um segundo somados à edição de som quase que completamente adicionada digitalmente para efeitos de surrealismo causam a impressão de um filme prestes a explodir.

O roteiro, provavelmente o melhor da carreira de Wright, também é muito criativo ao abraçar completamente seu aspecto circular escondendo piadas em rimas visuais e “dicas” nos diálogos do que irá acontecer. Muito mais do que pequenas “gags” que se repetem para efeito cômico, embora também estejam presentes, o texto de Todo Mundo Quase Morto está recheado de prenúncios: da conclusão do filme que, sem spoilers, acaba por se revelar uma ode ao comodismo até frases como “À sua esquerda. Bom tiro!” e “Quem colocou essa música? Está no modo aleatório”, praticamente qualquer acontecimento pode ser referenciado mais adiante no roteiro. Destaque para dois planos-sequência praticamente idênticos, que mostram a ida de Shaun de sua casa até o mercadinho e usam essa similaridade para criar ironias visuais.


É interessante notar como até os atores acabam adquirindo para si essa identidade de repetição, cada um criando para seu personagem pequenos tiques e manias que ajudam na construção de suas respectivas personalidades. Simon Pegg, excelente como sempre, nos entrega um Shaun bem intencionado, porém acomodado que vê no apocalipse apenas mais um incômodo para o tirar do sofá. Nick Frost se diverte no papel com sua constante despreocupação, evidenciada pelas situações de perigo em que este se encontra sem ação, olhando para o celular ou ironizando o perigo com seu sorriso sarcástico. Penelope Wilton e Lucy Davis, mãe de Shaun e Dianne, respectivamente, entregam performances afetadas pelo mundo ao redor mas sem perder uma certa inocência, o que nos traz situações tanto emocionais quanto cômicas. Kate Ashfield como Liz é, infelizmente, a que menos se destaca, servindo apenas como objetivo do protagonista e para alguns ataques de raiva periódicos.

O destaque da obra é, apesar de tudo, o cínico David, vivido brilhantemente por Dylan Moran; de longe o personagem mais complexo do roteiro, o ator o interpreta como alguém com uma voz grave e controlada, mas que pode perder o controle de suas emoções por motivos muito simples. A história de David e sua relação com Dianne e Liz é tragicômica ao extremo e, por causa de seus fracassos, acaba descontando todo o peso de sua insignificância em Shaun, assumindo este como um líder inválido, e acreditando, claro, poder tomar seu cargo.


Contudo, mesmo com todas essas qualidades, há ainda alguns pequenos incômodos que tive com o filme; apesar de insignificantes perto das conquistas de Wright, valem nota: como mencionado, a personagem Liz não tem tanta personalidade quanto o resto do grupo e o roteiro a trata praticamente apenas como interesse amoroso e aquela que defende o protagonista quando este faz decisões questionáveis. Há também alguns eventos que deveriam afetar pesadamente Barbara, a mãe de Shaun, porém algumas cenas depois ela parece ter se esquecido do que acabou de acontecer. Por último, não é bem um defeito, porém há um intervalo de 10 a 15 minutos no terceiro ato em que o humor é quase que deixado de lado para que haja um foco maior no senso de perigo e experiência de terror, o que contrasta com todo o apresentado até aquele momento, apesar de ser um conjunto de cenas bem eficiente.

Todo Mundo Quase Morto é ao mesmo tempo divertidíssimo e muito inteligente, com certeza uma das melhores obras de Edgar Wright, o que não diz pouca coisa. As referências agradarão os fãs do tema enquanto os personagens bem desenvolvidos e direção energética certamente divertirão os não muito familiarizados com zumbis; além disso, as jogadas de roteiro ainda são uma ótima forma de manter ocupados os cinéfilos que gostam de aproveitar cada segundo com total atenção. Criativo, inteligente, engraçado e profundo, o filme é definitivamente uma recomendação fortíssima.

Título Original: Shaun of the Dead


Direção: Edgar Wright


Elenco: Simon Pegg, Nick Frost, Kate Ashfield, Lucy Davis, Dylan Moran, Penelope Wilton, Bill Nighy.


Sinopse: Um funcionário de vendas de uma loja de eletrônicos e seu melhor amigo precisam salvar seus amigos e suas famílias de zumbis que tomaram conta de Londres.


Trailer
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1 thoughts on “Crítica: Todo Mundo Quase Morto (2004, de Edgar Wright)”

  1. Todo Mundo Quase Morto e um bom filme, recomendaram-me esta filme e realmente é muito interessante. Acho que é um dos melhores filmes e que fizeram. Sou uma fiel seguidora de Edgar Wright filmes Apesar de não ser um diretor tão reconhecido na indústria do cine, ele é um dos poucos que conseguem boas obras cinematográficas de ação graças ao seu grande profissionalismo. Seus efeitos especiais estão incríveis, trilha sonora e atuações geram um resultado que consegue captar aos espectadores.

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