Crítica: Chappie (2015, de Neill Blomkamp)

Chappie é um dos fracassos deste ano, com aprovação de apenas 30% da crítica especializada, além de uma bilheteria fraca. O filme conseguiu se pagar, mas com dificuldades. A verdade é que Chappie não é um filme grandioso, embora houvessem expectativas sobre ele. E esta expectativa vem por causa do diretor envolvido, Neill Blomkamp, que em anos recentes entregou grandes sucessos como Distrito 9 e Elysium. E apesar de realmente ser o filme menos impactante do diretor, é uma obra interessante. Chappie é um filme injustiçado, que deverá ganhar reconhecimento daqui uns anos. Mas para poder apreciar Chappie deve-se primeiro observar algumas coisas peculiares que antecedem o filme.

A primeira coisa que devemos observar é o estilo do diretor: misturar ficção científica com crítica político-social. Numa espécie de cruza de Exterminador do Futuro, Aliens e outras ficções famosas, o diretor coloca um pouco de Tropa de Elite, Cidade de Deus, Diamante de Sangue e outros filmes de cunho realista. Neill Blomkamp é sul-africano, nascido em Joanesburgo e conhece bem as dificuldades e carências das regiões pobres de onde veio. Com gosto por ficção científica, o cara dirigiu curtas que chamaram a atenção de um grande cineasta do cinema: Peter Jackson (sim, o cara que fez O Senhor dos Anéis, O Hobbit e o último King Kong). Jackson incentivou e produziu o primeiro longa-metragem de Blomkamp, Distrito 9. O filme foi um dos melhores de 2009, uma grande surpresa naquele ano, deu bilheteria, chegou ao Oscar em 4 categorias, inclusive em Melhor Filme, batendo de frente com gigantes, como Avatar. Distrito 9 mostra a chegada de aliens doentes e fracos, e mostra como o governo os recebe, forçando-os a ficarem num distrito, ameaçando-os com assistentes sociais e sofrendo discriminação. O filme é uma metáfora à segregação social, à xenofobia e à acontecimentos ocorridos durante o Apartheid – um regime africano onde a minoria branca discriminava e tirava o direito da maioria negra na própria África do Sul, durante 1948 e 1994.

Com o estrondoso sucesso e como marca a originalidade, o diretor ganhou a atenção do mundo. Em 2013, seu segundo filme estreou repleto de expectativas. Elysium mais uma vez trouxe uma ficção científica com críticas sociais, mostrando a diferença de tratamento e benefícios da classe alta com a baixa. O filme já não causou tanto impacto quanto o anterior, mas ainda assim foi bem recebido no geral, trouxe cenas fortes, tensão e colocou nosso excelente ator brasileiro Wagner Moura em Hollywood, ao lado de Matt Damon. Nos filmes de Blomkamp, além destas realidades sociais, temos outros elementos interessantes, como a utilização de efeitos especiais de maneira mais crua e realista, direção em tom documental, cenas mais pesadas (o diretor não segura a mão na violência) e a representação do lugar de onde o cineasta vem: a África. Além de cidades, nomes e elementos, o diretor sempre traz alguém de lá junto. Em Distrito 9 o herói é o ator Sharlto Copley, também nascido em Joanesburgo. Em Elysium, Copley é o vilão, mostrando a preferência e a amizade do diretor pelo ator. Pois bem, então chegamos a ‘Chappie, onde temos Copley emprestando sua voz ao robô protagonista.

Se em Distrito 9 temos aliens, em Elysium temos uma plataforma espacial, aqui em Chappie temos robôs e inteligência artificial. E agora a crítica social se refere à polícia corrupta e seu abuso de poder. Se refere à figuras do chamado “gueto”, personagens caricatos e marginalizados, muitas vezes recorrendo à violência por falta de opção ou para salvar a pele. No filme vemos robôs policiais (como no novo Robocop de José Padilha) colocados em ação para pôr fim à uma onda de crimes na África do Sul. É quando o programador Deon (o ator indiano Dev Patel de Quem Quer Ser um Milionário?) cria a primeira inteligência artificial, colocada em um destes robôs. Porém, o casal de assaltantes Ninja e Yo-Land roubam Chappie, afim de usá-lo para melhor assaltarem e assim pagarem uma dívida à um líder de uma gangue e salvarem seu pescoço. Porém a mente artificial de Chappie precisa aprender e Deon o visita para ensiná-lo. Enquanto isso, o policial Vincent (Hugh Jackman) tem outro projeto em mente: robôs com pesada artilharia, controlados com a mente através de um capacete. Vincent não aceita a inteligência artificial, enxerga isso como heresia, e decide abrir guerra contra Chappie, os ladrões e Deon.

Nesta trama intrincada, questões sobre moralidade e aprendizado são levantadas. Chappie é como uma criança ingênua, que imita o que aprende. Em momentos mais amargos, o robô sofre bullying, aprende a atirar como traficante (com a arma torta e tudo), usa correntões de rapper, fala palavrão e se acostuma com a visão da periferia. Enquanto Ninja e Yo-Land mergulham Chappie na criminalidade, aos poucos eles criam uma afeição de pai e mãe com o robô. Paralelamente, seu criador Deon o visita e tenta cultivar boas qualidades no robô. Diante estes contrastes, Chappie fica confuso. Mas há também momentos mais suaves. Há uma bela cena quando pela primeira vez Chappie tem contato com um cachorro. Embora rápida, a cena é interessante e de uma riqueza poética. Mesmo em um ambiente sujo e marginalizado, uma inteligência artificial está tendo contato com um ser vivo puro.

Sendo sincero, o filme tem sim breves defeitos, como um roteiro meio perdido, atirando para todos os lados. Alguns conceitos científicos são fantasiosos demais, destoando um pouco da imagem mais crua do filme. O visual caricato de Hugh Jackman é estranho, com um cabelo brega e de bermuda. A dupla Ninja e Yo-Land atua bem mal, com alguns momentos forçados e a voz de Yo-Land incomoda um pouco. Eles são tão estranhos na tela quanto fora dela, com um visual bizarro. Ninja usa uma camiseta dele mesmo, uma espécie de piada interna.

Mas há alguns fatos que fazem sentido, fazendo-nos ignorar os defeitos do filme. Os próprios Ninja e Yo-Land por exemplo. Seus personagens no filme tem seu mesmo nome artístico. Para quem não sabe, eles são rappers sul-africanos, que utilizam de um visual, atitudes e linguajar forte para chocar, chamar a atenção e fazer a sociedade refletir sobre a desigualdade social. Tanto na sua carreira artística como aqui no filme, eles conseguem isso. Então mesmo que atuem mal, em determinado momento passamos a simpatizar com suas personagens, ou por serem cômicas devido as esquisitices, ou por serem representações de figuras injustiçadas. Eles representam pessoas sem opção, criadas no sub-mundo, são sub-produtos decadentes de uma sociedade dividida. Eles apenas querem a chance de viverem mais um dia, sem serem mortos por bandidos realmente piores. Quando entendemos isso, passamos a ter carisma por eles.

O indiano Dev Patel atua razoavelmente bem. Interessante a escolha do ator, talvez para dar uma diversidade a mais no filme. A veterana Sigourney Weaver (da saga Aliens) aparece pouco, mas está ok no seu papel. Hugh Jackman manda bem como o vilão, o policial corrupto. Interessante a decisão do diretor de pegar um ator muito conhecido e que geralmente é o herói para ser um vilão caricato. Mais uma vez Neil Blomkamp mostrando que gosta de variar e fugir do comum. Mas o filme é mesmo dele, o próprio Chappie é a alma do filme. Com uma voz suave, muito bem dublada por Sharlto Copley, Chappie e suas “orelhas” que se mechem nos leva na sua odisseia de maneira emocionante. Mesmo que com falhas, é o robô protagonista que nos faz ficar grudados no filme o tempo todo, aprendendo junto com ele o horror das diferenças sociais. Nos seus trejeitos (como o caminhar estilo “mano do gueto”), até nas suas decisões de escolhas entre o que é certo ou errado, Chappie nos faz refletir sobre nosso mundo. E ainda lança questões sobre criação, alma e direito de escolha. Mesmo que fantasioso, o seu final não deixa de ser no mínimo curioso.

Com mais acertos do que erros, Chappie é um filme interessantíssimo, injustiçado e que não merecia o fracasso que foi. Interessante que agora que o filme já passou, muitos tem defendido o filme. Um crítico por aí até o chamou de um dos melhores filmes do ano. A verdade é que para entender a proposta de Chappie deve-se primeiro saber a proposta do diretor, que gosta de cutucar a sociedade. Com efeitos especiais muito bem utilizados, ação que prende e algumas cenas gráficas mais chocantes (marcas de Blomkamp), Chappie não é mais grandioso por que não quis. Nunca foi essa a intenção. Embora tenha a promissora e grande ideia de inteligência artificial, a decisão do diretor foi entregar um conto simples. Um conto do gueto. Aqui acontece com um robô, mas na esquina da sua casa pode estar acontecendo com seu vizinho. É inegável que Neill Blomkamp tem seu estilo próprio, controverso e original. E nos dias de hoje ter um diretor assim dedicado à ficção científica é algo de se dar valor. Seus filmes divertem, mas trazem reflexões pertinentes, em tempos de uma sociedade cada vez mais ligada à tecnologia, mas cada vez mais dividida nas suas camadas.


Aguardemos o próximo filme de Neill Blomkamp, que será um novo capítulo da saga Aliens, trazendo de volta a heroína original Sigourney Weaver. E começam as expectativas…

Direção: Neill Blomkamp

Elenco: Hugh Jackman, Sigourney Weaver, Sharlto Copley, Dev Patel, Ninja, Yo-Landi Visser, Jose Pablo Cantillo, Janus Prinsloo, Eugene Khumbanyiwa.

Sinopse: em um futuro próximo, a África do Sul decidiu substituir os seus policiais humanos por uma frota de robôs ultra resistentes e dotados de inteligência artificial. O criador destes modelos, o brilhante cientista Deon (Dev Patel), sonha em embutir emoções nos robôs, mas a diretora da empresa de segurança (Sigourney Weaver) desaprova a ideia. Um dia, ele rouba um modelo defeituoso e faz experiências nele, até conseguir criar Chappie (Sharlto Copley), um robô capaz de pensar e aprender por conta própria. Mas Chappie é roubado por um grupo de ladrões que precisa da ajuda para um assalto a banco. Quando Vincent (Hugh Jackman), um engenheiro rival de Deon, decide sabotar as experiências do colega de trabalho, a segurança do país e o futuro de Chappie correm riscos.

Trailer: 



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