O LOBO DE WALL STREET (THE WOLF OF WALL STREET)

” Insano, frenético e absurdamente genial. Num “tour de force” assustador, Martin Scorsese reata com seu caráter fílmico, se apossa de sua identidade clássica, que cede ao contemporâneo e se comunica com o público. Em trama real onde impera a supervalorização do vazio, Leonardo DiCaprio e Jonah Hil, entregam as melhores atuações de suas vidas e ficam cravados num dos 10 melhores filmes do ano.”


Martin Scorsese de fato é um gênio. Incompreendido em tantas vezes, manteve um esforço em sua extensa filmografia por preservar um caráter fílmico. Nem sempre acertou. Mas em O Lobo de Wall Street a impressão que se tem é que ele retomou todo o seu caráter por completo, aquele que fez de alguns de seus filmes sua maior glória e o emoldurou, como Cassino ou Os Bons Companheiros. Assim retoma seus ideais clássicos – e aqui fazendo-nos tendenciosamente a imaginar que de uma vez por todas – e submete-os através de um roteiro cheio de alicerces num casamento, bem a regra autoral, com uma imaginação contemporânea. A impressão que se tem é que Scorsese respirou, tomou um fôlego bem lá de baixo e foi soltando aos poucos, mas com delicada lentidão. E lentidão pra que? Pra sentir o imenso prazer em que se pode ter em respirar. Simplesmente isso: respirar com vontade.

E foi de uma genialidade soberba, pois se ele tivesse proposto a si próprio filmar um romance, um melodrama, uma comédia, enfim, um gênero com vias clichês, tudo ficaria barbado demais e, lógico, não seria Scorsese. É por isso que o que se chama de “glamourização” das atitudes “imorais” do personagem, aqui é usada, por parte de críticos e por parte da opinião pública, para uma tentativa de desqualificar ao filme. Tentativa esta que morre a beira da praia, de tão infundada e desprovida de argumentos plausíveis, afinal estamos diante de um gênio numa de suas melhores performances. Nesse sentido temos a evidência que falta a pobre visão, ou seja, na tentativa de Scorsese escolher o que significaria o clássico e o contemporâneo, ele parte de uma história bizarra, mergulhada no vácuo e no rompimento com aquela visão da fronteira que demarca os milímetros do certo e do errado. E, acredite, não existe nenhuma facilidade prática que possa assegurar que o que se vai filmar, vai ficar bem na tela.

O desejo do diretor, na travessia violenta dos limites durante o filme, nos põe – sem aviso prévio – a presença de Jordan Belfort, um personagem da vida real que se destrata, no sentido mais literal da palavra, bem a nossa frente. A história, adaptada do livro de título homônimo ao do filme, retrata este homem, que começou a trabalhar como um convencional agente financeiro em Wall Street nos anos 90 e que conseguiu tecer um esquema pelo qual se transformou num bilionário descomunal. O instinto o transformou no rei da selva de Wall Street, daí o início do filme, que dispensou a introdução da produtora, sendo substituída pelo nascimento do roteiro, que surge de uma propaganda da própria empresa de Jordan, onde um leão caminha pelas dependências do local, prenunciando a potência do personagem.

Se ficasse somente nisso a gente se perguntaria “mas o que tem de novo nesse enredo?”. Pois bem, antes de começar sua jornada, Jordan foi muito bem aconselhado por seu primeiro chefe, Mr. Hanna, emblematicamente interpretado por Matthew McConaughey, numa sequência antológica. Sentados num restaurante Mr. Hanna bate no peito balbuciando uma espécie de som indígena, depois para e faz uso de cocaína (atitudes que o próprio Jordan irá repetir incansavelmente em seu império). Jordan resolve questioná-lo “Como o senhor consegue usar drogas e ainda exercer suas funções no trabalho?” e ouve a pérola “De que outra maneira você faria este trabalho? Com cocaína e cadelas meu amigo”. Dali pra frente a vida de Jordan, principalmente a medida que ascender, se resumirá em dois únicos vícios, na mesma proporção violenta da dependência: dinheiro e drogas. Sim, porque aqui o dinheiro é visto como uma droga mais corruptível que as substâncias, que parecem vir diretamente do inferno, ingeridas por Jordan. E independente de aceitarmos ou não, durante o filme, o personagem vai esfregar na tela (na verdade na nossa cara) tudo o que ele fez, sem pudores, sem tabus e sem qualquer inocência. Dessa forma descortina-se o Cinema sensorial, que vai causar estranheza, sensações de desprezo e de repugnância. Mas que credibilidade nossas sensações tem diante deste Cinema? Nenhuma e é aí que mora a beleza de filmes como O Lobo de Wall Street.

Um certo discernimento sobre a obra não é demais: Scorsese, embriagado com a frustração do mundo financeiro, nada regulado e que teve seu cume na avalanche de 2008, foi buscar o roteirista Terrence Winter, premiado pela série Família Soprano, para compor o roteiro e o que Terrence criou para o diretor significa uma verdadeira engenharia. A trama vai se fechando, sempre focando no personagem de Leonardo DiCaprio, ficando substanciosa a cada instante, calcada na realidade do vazio, do exagerado, da ganância, dos princípios do prazer, da prepotência e de uma vida feita de lixo. É, de fato, uma experiência calcada no humor negro e no drama substancial, onde o protagonista se alimenta de si próprio. Interessante que assistir a filmes como esse de Scorsese, passam a impressão de se estar lendo mesmo um livro e desses imensamente grossos.

Para que o personagem ganhasse tamanha impressão imperiosa, em sequências é possível enxergar Jordan adentrando sua empresa com a câmera posicionada num horizontal formidável, transformando-o subjetivamente num touro ( e sim, estamos falando do animal); em outras ele encarna uma espécie de “pastor” financeiro pregando a motivação aos funcionários, com a fúria nos olhos; em outras ainda tudo vira um circo, em festas dentro da empresa, regadas a bagunça, orgias e dinheiro (conferindo a trama um aspecto nonsense). Detalhes possíveis através de roteiro que tem quebras entre narrador e narrativa, que deixam a experiência mais palpável. Mas a melhor de todas as sequências, a mais emblemática, prova a maturidade dos atores, outrora tão subestimados. Os personagens, tanto de DiCaprio, quanto de Jonah Hill, sofrem ambos uma overdose, em lugares diferentes e é DiCaprio quem, inexplicavelmente, salva o amigo. Em interpretações assustadoras, as melhores de suas carreiras, os dois se contorcem, parecem animais e tiram o fôlego até dos mais valentões.

O Lobo de Wall Street surge na temporada de premiações 2014 preenchendo quesitos merecidamente, mas não é o seu ano, embora DiCaprio tenha vencido o Globo de Ouro na categoria de melhor ator em comédia ou musical. Excelente reconhecimento. A verdade é que o filme está ao lado de A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino e ao lado de Blue Jasmine, de Woody Allen, ambos da mesma temporada de premiações. Nesse sentido surge como crítica veementemente a cultura do nada, a busca pelo prazer automático, o que é a veia condutora pela qual o personagem de Toni Servillo se questiona no filme de Sorrentino. Vem de encontro também com os traumas, com a grande celeuma, causada pela crise, da qual a personagem de Cate Blanchett também está padecendo no filme de Allen. De todos os jeitos aqui está um Scorsese, num “tour de force” devastador, cujas 3 horas de duração mostram-se fiéis ao ideal da obra literária, mais fiéis ainda ao ser humano retratado e se comunicam com o espectador, afirmando que não poderiam durar menos. Se se comunicam com o espectador então atingem a pretensão de Scorsese que demonstra na obra justamente esse desejo, se identificar com o público. É, na verdade, uma bizarra e prazerosa overdose de Martin Scorsese, que não sabemos quando se repetirá.







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