Análise: Alias Grace (2017, Mary Harron)

A minissérie, baseada no
romance 
Vulgo Grace de Margaret Atwood, é um prato cheio para os
amantes de uma boa conspiração e suspense, e intrigante, mesmo sem saber que se
trata de uma história real. A escritora ficou famosa após outra obra ganhar o
público e a crítica, 
The Handmaid’s Tale,
a história se passa em um futuro não muito distante, onde as mulheres viram
posse do governo, perdendo todos seus direitos civis, voltando ao princípio
básico de servir apenas como um instrumento de procriação. Extremismo
religioso, misoginia, preconceitos em geral, são o plano de fundo dessa
incrível e assustadora história. Com 
Alias Grace no entanto,
voltamos ao passado de 1840, e passamos a conhecer a trágica trajetória de vida
de Grace (Sarah Gordon), desde sua chegada a um novo país, até os dias que se
sucederão aos assassinatos. Quer saber mais? Então continue lendo. Já avisando
que 
contém SPOILERS! Se ainda não terminou os episódios,
cuidado! 



Logo no primeiro episódio somos apresentados a todas as faces que, de alguma forma, Grace acaba usando durante a série. Fica nítido a dualidade de seu caráter e como a série pretende trabalhar em cima disso. Em seu primeiro monólogo, ela está olhando para um espelho dizendo tudo aquilo que ela ouviu dizer a seu respeito após o crime: “Demônio desumano”, “A inocente vítima de um vilão”, “Ignorante de mais para tal crime”, “Astuta e desonesta”, e a cada frase, sua feição muda de acordo, varia entre a malícia e a inocência, e por fim, recebemos um olhar neutro e frio. Diria que esse foi o primeiro indício de que sim, ela poderia ser culpada.

Dois assassinatos. Dois culpados.

A primeira coisa que devemos prestar atenção é justamente nos indícios. Todas as conversas tem uma vírgula, uma palavra, um pensamento, que liga sim, ao caso todo. Tudo está conectado. Mas vamos partir do princípio. 

Grace é uma imigrante que parte para o Canadá com sua sua mãe e irmãos, porém, no meio da viagem sua mãe morre, deixando para ela a responsabilidade de criar as crianças e cuidar da casa. Essa é a primeira grande perda de sua vida. Seu pai, um homem violento e alcoólatra, começa a ter liberdades no mínimo inapropriadas com ela e a trata com um desdém enorme. Grace, no entanto, continua sofrendo maus tratos até o dia que seu pai a obriga arrumar um emprego. Nesse primeiro ato, é possível ver o primeiro indício de que ela é capaz de pensar em algo como matar, já que ela, por pouco, desiste de assassinar o pai. Porém, chega a ser compreensível sua atitude, devido tamanho o sofrimento que ele causa. 

Ela, então, parte para trabalhar na casa de uma família rica, onde acaba conhecendo Mary Whitney (Rebecca Liddiard), que se torna sua melhor amiga e, porque não dizer, uma figura materna, já que Mary ensinou várias coisas à ela, que caberia a uma mãe explicar. Tamanha a influência de Mary, que Grace a sita em quase todos os episódios, se não em todos. 


Entretanto, a história é cortada diversas vezes, já que Grace está narrando tudo ao seu novo médico, Dr. Simor Jordan (Edward Holcroft), que está sendo pago para tentar provar a sua inocência após 15 anos de encarceramento. A mesma história inclusive, por diversas vezes, é mostrada em várias formas, enraizando aos poucos uma dúvida ou pelo menos, uma incerteza, já que a narradora não é confiável. 

A segunda grande perda vem justamente com sua querida Mary. Que morre em consequência de um aborto. Grace, então, diz perder os sentidos, e quando volta, passa dois dias acordada sem se lembrar de nada do que fez. Sendo esse seu primeiro episódio de perda de memória. Os indícios deste ato são claros, primeiro a morte de Mary, gerada devido ao seu envolvimento com um homem rico, que apenas a usou e pouco se importou com sua morte, vivendo sem quaisquer consequência pelos seus atos e a perda de consciência de Grace. Quem era a Grace desses dois dias? Essas perguntas podem ter sido respondidas mais a frente.


Nesse meio tempo, é possível notar uma incerteza pairando sobre o Dr. Jordan, pois, quando questionado sobre os avanços nas sessões, ele se mostra cada vez mais confuso e propenso a acreditar na culpabilidade de Grace, e não o contrário, como foi contratado para fazer. Em alguns momentos, temos uma sutil sensação de que ele, assim como nós, está sendo condicionado na narrativa. A verdade e a mentira dividem uma linha tênue na história, da qual a personagem usa e abusa para tentar confundir a mente do telespectador. Acredito que ela não mentiu em nenhuma parte, porém, também não disse a verdade ao todo, “pode ser que eu minta”, foi o que ela disse ao encontrar com o Dr. Jordan na primeira vez. A partir do primeiro encontro com Nancy Montgomery (Anna Paquin), é que traçamos o começo do fim de Grace. 


Tomada por uma súbita vontade de ir embora da casa onde Mary faleceu, e para fugir das investidas dada pelo seu patrão, Grace aceita a proposta de Nancy sem pensar muito e começa a trabalhar na casa de Thomas Kinnear (Paul Gross), um homem de certa idade e certa reputação de solteiro, que vive afastado, apenas com seus dois empregados, Nancy, a governanta e James McDermott (Kerr Logan), um mau humorado faz tudo. Ao chegar, Grace percebe que algo não está ao todo certo nessa casa. Nancy, que se diz governanta, toma liberdades de senhora da casa com todos, dando ordens e tratando mal os empregados. James não se sente à vontade em ser mandado por uma mulher, como se isso fosse inferior a sua qualidade de homem. E pouco a pouco, fica nítido o ódio crescente que ele alimenta por Nancy, diria até que de todas as mulheres, já que mesmo sem motivo, ele ataca Grace verbalmente sempre que pode. 




Nancy logo mostra sua real face, ao começar a sentir ciúmes de Grace, que supostamente, nunca havia dado motivos para o patrão sentir que poderia ter algo com ela. Em algumas cenas, não fica claro se ele tentou ou não se aproveitar, já que a narrativa não é confiável, porém, em várias outras é possível ver a maneira que, não só ele, mas todos olham para ela. Como se sua única serventia fosse ser bonita. Como um pedaço de carne, que está ali unicamente para servir. E Grace passou por isso toda sua vida. Sendo subestimada pela idade, pela beleza, por ser mulher, por ser pobre… Algo muito interessante sobre a série é a sutileza que ela usa ao abordar assuntos delicados para a época e, lembre-se, é uma história de 1840, porém, com temas ainda tão impactantes e discutíveis no nosso século. Vimos o tratamento que as mulheres recebem ao abortar, o abuso sofrido por homens, que aqui, sendo de uma classe social melhor ou não, sempre saem impunes de seus atos. A forma como os imigrantes eram vistos, o esforço em tentar ser alguém, ou fazer algo significativo e mesmo assim, serem tratados como se nem existissem. Em uma cena, em que o Dr. Jordan questiona Grace sobre o que tanto ela faz durante o dia numa casa, a mesma se irrita e pensa “não é culpa dele, ele não foi criado para isso.” Ou seja, apenas mulheres são criadas para serviço doméstico e afins, enquanto os homens trabalham e vão estudar fora, caso sejam ricos. A hostilidade que a série transmite é muito desconfortável. 



Sobre os assassinatos, não temos a certeza concreta se ela instigou ou não James a matar Nancy, ou se ele fez isso por vontade própria, já que ela não nega, nem afirma tê-lo feito. Supostamente ela não se lembra dos fatos. Entretanto, ao voltar aos indícios de que tanto falei, Nancy era tudo aquilo que sua amiga Mary foi. Uma mulher que engravidou do patrão, mas ao contrário de morrer em uma cama, conseguiria ter o filho, a casa, o marido, tudo aquilo que Mary almejava. Por que? Porque Nancy, uma mulher de reputação duvidável, nem um pouco amável com Grace, teria tudo que sua amiga merecia? Não era justo. Nancy Montgomery era uma constante lembrança do que Grace já havia perdido na vida. Por diversas vezes, Grace diz ter ouvido Mary falar com ela, a própria Nancy diz a Thomas que se sente desconfortável com a presença dela na casa, já que por inúmeras vezes, a viu conversando sozinha. A própria Grace não nega nada disso, então, porque não matá-la e fazer justiça?  



Dois assassinatos. Dois culpados. Porém, somente James foi a forca.


Teria Grace se aproveitado da visão que a sociedade tinha dela e manipulado a todos como uma garota vulnerável e ingênua, que apenas ajudou no assassinato para não virar uma vítima também? Ou ela deliberadamente o fez para se livrar da morte? Numa época onde todos lutavam para ter mais justiça, onde o país se via em uma tentativa de ser mais abrangente com as penas, já que a grande maioria dos casos era resolvido com pena de morte, Grace, mesmo sendo considerada culpada, foi salva. Após muitos anos, ela é solta e se casa com um amigo que fez quando morava na casa de Kinnear, o mesmo comprou a propriedade e ela volta a viver lá, após tanto tempo. Em um último momento, ela escreve uma carta ao Dr. Jordan, contanto tudo o que estava ocorrendo com ela, e a mesma diz que conta uma história diferente ao marido, como ela fez com ele, contando o que supostamente, eles gostariam de ouvir. Reforçando mais uma vez que sua narrativa é manipuladora. O ritmo lento da série cai como uma luva nesse trabalho de nos fazer crer na figura doce e sofrida de Grace, mas que ao mesmo tempo, nos faz questionar seus atos. A minissérie é excepcional em todos os sentidos e vale muito todos os seis episódios. Assista e tire suas próprias conclusões! 




Título Original: Alias Grace


Direção: Marry Harron


Elenco: Sarah Gordon, Anna Paquin, Zachary Levi, Edward Holcroft, David Cronenberg, Kerr Logan, Rebecca Liddiard, Paul Gross


Sinopse: Grace Marks é uma jovem irlandesa de classe média baixa, que decide tentar a vida no Canadá. Contratada para trabalhar como empregada doméstica na casa de Thomas Kinnear, ela é condenada à prisão perpétua pelo assasinato brutal do seu patrão e da governanta da casa, Nancy Montgomery. Passados 16 anos desde o encarceramento da imigrante, o Dr. Simon Jordan se apaixona por Grace e fará de tudo para descobrir a verdade sobre o caso. 


Trailer:




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