Crítica: Silêncio (2016, de Martin Scorsese)

Enquanto assistia o anúncio dos indicados ao Oscar 2017, percebi a ausência de Silence, o mais novo filme do lendário diretor Martin Scorsese, responsável por obras-primas como Os Bons Companheiros, Taxi Driver e Touro Indomável, entre outros. Costumo dizer – em tom de brincadeira – que há certos diretores que deveriam ser indicados ao Oscar por qualquer filme que fazem (Scorsese, Coppola) e fiquei surpreso com o fato de que este filme não foi indicado a nenhuma das principais categorias (a única indicação foi na categoria de Melhor Fotografia), e isso é uma terrível injustiça pois estamos falando de um dos melhores filmes do ano e me arrisco a dizer que um dos melhores filmes de Martin Scorsese. Rivaliza com Taxi Driver como o mais reflexivo, difícil e complexo.



E é curioso dizer isso, pois as principais marcas de Scorsese não estão presentes nesse filme. Os planos sequência, a edição rápida e os movimentos de câmera extremamente ágeis não fazem parte da linguagem visual de Silence. Scorsese usa aqui planos mais longos que o normal e cortes sutis, que dão uma sensação meditativa, como é a maioria do filme. O diretor demonstra saber exatamente como fazer quem assiste sentir o que acontece em tela. É incrível como cada plano é bem cuidado e cirurgicamente executado. Um plano em particular me chamou a atenção, é um plano longo filmado pelo ponto de vista do padre Rodrigues, aonde a câmera se move suavemente, mas explora todo o ambiente e toda a tensão que a cena cria. O diretor consegue explorar ao máximo toda a tensão gerada pela narrativa e os ambientes que conhecemos ao longo da projeção. A maneira que Scorsese trabalha o som no filme também é admirável. Antes do primeiro enquadramento que vemos em tela já conseguimos sentir o clima do filme. Em certos momentos nós estamos ouvindo um som altíssimo, em sua maioria de pássaros cantando ou o som dos passos barulhentos na grama ou na palha, e de repente paramos de ouvir e focamos completamente no que está acontecendo em cena.

Martin Scorsese durante as filmagens de Silence

É engraçado, sempre que sei que vou escrever uma crítica de um filme, busco escrever anotações em um caderno que tenho, e no caso de Silêncio percebi que a minha última anotação tinha sido a quase 1 hora do final do filme. Isso não é porque o filme fica ruim ou monótono em sua última hora, pelo contrário. Estava tão imerso com o que estava acontecendo que acabei por me esquecer de anotar certas cenas. Por sorte, esse é um daqueles filmes que você guarda todos os minutos em sua mente. Nesse caso, todos os seus longos 161 minutos (que foi a versão mais curta que Scorsese conseguiu fazer, pois a versão ideal para ele teria quase 3h30 de duração. Adoraria que essa versão fosse lançada em Blu-Ray.).

O filme é dividido em duas partes: a primeira é a experiência do padre Rodrigues (Andrew Garfield) e do padre Garupe (Adam Driver) tentando se esconder de todos, pois no Japão do século XVI era um crime ser cristão, e a segunda parte é um estudo de personagem brilhante sobre Rodrigues. A comparação pode ser absurda, mas esse filme me lembrou o excepcional Solaris (1972, de Andrey Tarkovsky) no sentido de usar uma história visivelmente simples como uma “desculpa” para tratar de temas importantes. Se no longa russo de Tarkvosky o tema principal era filosofia, aqui é a religião.

O roteiro também é de Scorsese, em sua terceira parceria com Jay Cocks. Os dois escreveram juntos A Época da Inocência, de 1993 – único filme de Scorsese que realmente não gosto – e Gangues de Nova York, de 2002, que considero um bom filme. É um texto muito complicado, que trata de temas como valores, até onde uma pessoa pode ir por sua religião e os limites humanos, principalmente envolvendo o amor ao próximo, mesmo que você tenha jurado que sempre vai amá-lo⁠⁠⁠.⁠ O roteiro retrata com sensibilidade o sofrimento dos cristãos japoneses, mostra como algumas pessoas que se dizem cristãs só se importam com eles mesmos – o contrário dos ensinamentos de Jesus Cristo – e mostra questionamentos presentes na mente de muitas pessoas – cristãs ou não – envolvendo Deus. Algumas falas de Rodrigues ilustram muito bem esses pensamentos. Há uma cena no filme que é uma metáfora sobre toda a violência que as religiões já causaram e a ignorância de todos que brigam porque alguém acredita em um Deus diferente. A cena começa com duas pessoas em uma sala lotada dando opiniões diferentes, quando de repente estão brigando, se xingando e até se violentando. Também é um roteiro muito eficiente no sentido de nos fazer se importar com os personagens e gostar deles. Em várias cenas eu temi pela vida de Rodrigues e fiquei na ponta da cadeira, e há algumas cenas que são pesadíssimas – não no sentido de sangue jorrando pra todo lado, mas no sentido emocional. E Scorsese não nos poupa dos choques, como – por exemplo – quando ouvimos que um certo personagem passou 4 dias agonizando.

As atuações são absolutamente brilhantes. Andrew Garfield certamente viveu o melhor ano de sua vida em termos interpretativos e dificilmente conseguirá o superar. Sempre achei Garfield um ótimo ator, até quando todos o criticavam e achavam que sua bela atuação em A Rede Social (2010, de David Fincher) tinha sido apenas uma coincidência e ele era um ator ruim. Sempre o defendi como Peter Parker – apesar de detestar ambos os filmes dele como o Homem-Aranha – e ele provou em Silence e Até O Ultimo Homem (filme pelo qual recebeu sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Ator) que é um ator fantástico. Aqui, ele interpreta um homem cuja fé parece inabalável, mas mostra que, perto das piores condições que um ser humano pode enfrentar, mesmo a pessoa que mais crê em Deus pode questionar o porque de tamanho sofrimento e mesmo duvidar da existência de um ser maior. Além disso, ele também mostra várias facetas do personagem ao se mostrar um homem extremamente orgulhoso – que chega a ver Jesus Cristo em seu lugar, em determinada ocasião, o que no momento parece apenas mais uma das várias belas metáforas que Scorsese coloca no filme, mas mais tarde nós a tomamos de outra maneira pelo jeito que um personagem se refere a isso. Adam Driver é outro que se destaca como o parceiro de Andrew Garfield na viagem, o padre Garupe. O personagem dele não é tão complexo quanto Rodrigues ou Ferreira, mas o esforço do ator é admirável e ele entrega com segurança todas as cenas que exigem mais dele como ator.

Liam Neeson não tem um papel enorme no filme, mas – de certa forma – a história só acontece por causa de seu personagem. Nas poucas cenas que tem, Neeson consegue fazer com que seu personagem seja uma das coisas mais bacanas do filme por causa de sua complexidade. Ele é um homem que desertou de sua religião (não é spoiler, nos primeiros 5 minutos do filme isso já é mostrado) e encontrou outra que parece o deixar feliz, mas nós – o público – ficamos pensando “Será que ele realmente acredita nessa religião ou isso é só um instrumento para fugir da perseguição e continuar vivo?”. Um ator que me chamou muita atenção foi Issei Ogata, que interpreta Inoue, uma espécie de Hans Landa, do fantástico Bastardos Inglórios, só que com cristãos ao invés de judeus. Ele passa uma arrogância muito apropriada para o personagem. O destaque fica com esses 4 atores, mas também gostei muito da atuação de Shinya Tsukamoto como Mokichi e Yôsuke Kubosuka como Kichijiro, personagem com camadas muito interessantes.

Tecnicamente o filme é absolutamente impecável. A fotografia de Rodrigo Prieto é maravilhosa – a única indicação ao Oscar que o filme recebeu foi pelo trabalho do diretor de fotografia -, a edição de Thelma Schoonmaker – mais uma vez – é perfeita, a direção de arte e os figurinos trabalham juntos para te levar ao Japão do século XVI – e funciona perfeitamente – e o trabalho de som é admirável.

Tenho apenas dois problemas com Silence: acho que a transição da primeira para a segunda parte do filme poderia ser mais bem detalhada. Acredito que ficou muito rápida a maneira que a produção tira Rodrigues de um lugar – tanto no sentido físico quanto no mental – e o coloca em outro. Apesar de ter entendido o que o filme queria que entendesse, gostaria mais se ele desse mais tempo para nós assistirmos o que vinha acontecendo com o personagem de Andrew Garfield naquela determinada parte da projeção, e o outro é que me senti um pouco confuso quanto à narração em off quando a narrativa chega perto de seu final.

Algumas cenas com certeza serão lembradas no futuro, como um diálogo sensacional em que Rodrigues e Inoue comparam a religião a um casamento ou o take final do filme, que é revelador e te faz pensar mais ainda sobre aquilo que eu comentei que pensamos sobre o personagem de Liam Neeson, padre Ferreira.

Silêncio certamente é um filme difícil, complexo e reflexivo. Tenho a sensação de que o grande público vai odiar esse filme e ele vai dividir opiniões até entre os cinéfilos e fãs de Martin Scorsese. É um filme totalmente diferente de O Lobo de Wall Street – o último projeto de Scorsese antes de Silence – e diferente de tudo que o diretor já fez, com a possível exceção de Kundun. É um desafio tanto para Scorsese quanto para o público. Eu abracei a ideia e, ao final do filme estava extremamente satisfeito. Um filmaço que merecia muito mais indicações ao Oscar que recebeu.

Título Original: Silence

Direção: Martin Scorsese

Elenco: Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Tadanobu Asano, Ciarán Hinds, Yôsuka Kubozuka, Yoshi Oida, Shinya Tsukamoto, Issei Ogata, Nana Komatsu

Sinopse: No século XVII, dois padres jesuítas portugueses, Sebastião Rodrigues e Francisco Garupe, viajam até o Japão á procura do mentor deles, Padre Ferreira.

TRAILER:



E você, já assistiu ao novo filme do mestre Martin Scorsese? O que achou? Acha que o filme foi injustiçado no Oscar? Deixe aqui seu comentário e obrigado por ter lido.


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